São Paulo, Sexta-feira, 22 de Outubro de 1999
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CINEMA MOSTRA DE SP
"Moloch", de Sokurov, pinta cores da morte

ALVARO MACHADO
especial para a Folha

Depois da repercussão discreta que a delicada elegia "Mãe e Filho" obteve na 21ª Mostra, Alexandre Sokurov, diretor de 48 anos radicado em São Petersburgo, ganha maior visibilidade com o tema escandaloso de "Moloch", seu 30º e mais recente filme. Na verdade, o escândalo foi abortado antes do nascimento, já que os distribuidores europeus se encarregaram de um boicote ao filme.
A polêmica gira em torno do risco de humanização de uma figura que os livros de história, a literatura e o cinema sugerem mais como um ente sobrenatural, a própria besta encarnada ou a versão moderna de Moloch, demônio bíblico ao qual se sacrificava crianças: Adolf Hitler.
Neste filme, o ditador é flagrado em atividades prosaicas, humanas demais para quem foi capaz de planejar e concretizar a execução de milhões de inocentes.
Vemos "Adi", o genocida, no interior de seus banheiros, na cama, às turras com sua amante Eva Braun, cantarolando a "Nona" de Beethoven e até mesmo caçando borboletas, nos jardins de seu refúgio nos Alpes, o castelo Berchtesgaden.
De outro lado, esse cotidiano é delineado com as cores de uma paleta fria de morte, que torna quase tocável o clima de terror histérico ao redor de um chefe com tamanho poder sobre vida e morte, de um "príncipe deste mundo", como os ocultistas chamam às vezes o demônio.
A cor seria, aliás, o elemento que, numa sucessão de quadros, concentraria no cinema o "efeito psicológico". Esse é um dos muitos novos conceitos do diretor, que trabalha à exaustão os elementos estéticos de cada fotograma enquadramento, cenário, figurinos, ruído ou música (as suas "paisagens sonoras"), filtros para as lentes, granulação do filme etc.
Uma espécie de pintor na vanguarda da técnica, em "Moloch" mandou construir lentes e refletores especiais, Sokurov filia-se ao mesmo tempo à tradição clássica da pintura, em sua vocação para criar atmosferas.
Um artista capaz de conferir tamanho grau de informação a cada uma das imagens que alinhava só pode receber o título de gênio. Porém, à parte um círculo que o assiste em pequenos cinemas parisienses, Sokurov é considerado "hermético".
Pouco justo: o problema de fruição de seus filmes está no olho do espectador médio, incapaz de concentração. A ação proposta acontece no interior de cada imagem, mais que na sequência das cenas. É uma ação silenciosa, não explícita, como na contemplação da pintura.
"Moloch", não obstante o ambiente quase doméstico retratado, expõe inequivocamente "a essência da feiúra do que faziam aquelas pessoas" (nas palavras do diretor), permitindo-se variações de tom que chegam, às vezes, à saturação da caricatura.
É um filme inestimável, porém não o mais denso de Alexandre Sokurov, que mereceria na Mostra toda uma retrospectiva, encabeçada pelo perturbador "Páginas Escondidas" (de 93, inspirado em "Crime e Castigo"), sem excluir a faceta de documentarista do diretor, brilhante manipulador de imagens de arquivo.


Avaliação:     

Filme: Moloch (Moloch) Direção: Alexander Sokurov Produção: Rússia, 1999, 103 min Onde: hoje, às 14h, no Masp Outras exibições na mostra: amanhã, domingo, 26, 28 e 29

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