São Paulo, quarta, 22 de outubro de 1997.




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Filme ridiculariza "cinema de umbigo"

CÁSSIO STARLING CARLOS
Editor-adjunto de Especiais

"Irma Vep", filme de Olivier Assayas, ex-crítico da revista francesa "Cahiers du Cinéma", pode ser uma decepção para quem espera da crítica uma reflexão sisuda sobre o cinema.
Um diretor decadente (Jean-Pierre Léaud) convida uma estrela do cinema oriental (Maggie Cheung, no papel de si mesma) para protagonizar uma refilmagem do clássico "Les Vampires", seriado dirigido por Louis Feuillade entre 1915 e 1916.
O tema do filme sobre um filme não traz nada de novo. Mas, em vez da elegia à própria arte, como François Truffaut fez em "A Noite Americana", Assayas opta pela ironia contra um modo, meio paralítico, de fazer cinema.
Mesmo reflexivo, o tratamento do tema é feito no registro peculiar da comédia. O diretor é megalomaníaco, os assistentes são desastrados ou intrometidos, a figurinista se apaixona pela estrela. Em resumo, tudo dá errado.
Os quiproquós servem para Assayas tratar com sarcasmo uma forma francesa de fazer cinema. O "cinema de umbigo", financiado pelo Estado para satisfazer uma elite e alimentar o delírio de "autoria" dos cineastas, é explicitamente ridicularizado no filme.
À sua maneira, leve e incisiva, Assayas explora a presença de Maggie Cheung como atriz e personagem para reiterar uma de suas descobertas como crítico.
Em 1984, ainda redator dos "Cahiers", Assayas co-dirigiu um número histórico sobre o cinema de Hong Kong. Naquela época -é bom lembrar-, ninguém tinha ouvido falar de diretores como John Woo e Tsui Hark, e Tarantino era ainda balconista de uma locadora de vídeos.
Na companhia do crítico Charles Tesson, Assayas viajou para Hong Kong e retornou, entre outros achados, com ótimas interpretações de obscuros filmes de kung-fu e uma meticulosa genealogia dos guerreiros shao-lin. Os ortodoxos receberam o número como uma heresia, mas hoje poucos duvidam que aquela usina de talentos já funcionava a pleno vapor.
Cheung, portanto, cumpre em "Irma Vep" o papel de encarnar a inventividade dos filmes de Hong Kong e arejar uma maneira poeirenta de fazer cinema.
O trabalho da câmera em "Irma Vep" é o exemplo mais evidente dessa referência. Ela possui o sentido da urgência típico das produções baratas de Hong Kong. O tempo todo na mão, a câmera penetra nos espaços e vai do plano geral ao close, não para exibir virtuosismo, mas para registrar a aceleração do tempo, deixar-se contaminar pela agilidade.
Diante da ameaça da dissipação, Assayas escolhe não ficar no canto resmungando contra a perda. Seu filme corre atrás das coisas e gira em todas as direções, tornando tudo o que acontece no mínimo interessante.
Filmado em menos de um mês, "Irma Vep" é um documento sobre a urgência, uma forma contemporânea de dizer sim para os riscos. E mostra que Assayas, além de perspicaz como crítico, é um ótimo cineasta.



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