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Filme ridiculariza "cinema de umbigo"
CÁSSIO STARLING CARLOS
Editor-adjunto de Especiais
"Irma Vep", filme de Olivier
Assayas, ex-crítico da revista francesa "Cahiers du Cinéma", pode
ser uma decepção para quem espera da crítica uma reflexão sisuda
sobre o cinema.
Um diretor decadente
(Jean-Pierre Léaud) convida uma
estrela do cinema oriental (Maggie
Cheung, no papel de si mesma) para protagonizar uma refilmagem
do clássico "Les Vampires", seriado dirigido por Louis Feuillade
entre 1915 e 1916.
O tema do filme sobre um filme
não traz nada de novo. Mas, em
vez da elegia à própria arte, como
François Truffaut fez em "A Noite
Americana", Assayas opta pela
ironia contra um modo, meio paralítico, de fazer cinema.
Mesmo reflexivo, o tratamento
do tema é feito no registro peculiar
da comédia. O diretor é megalomaníaco, os assistentes são desastrados ou intrometidos, a figurinista se apaixona pela estrela. Em
resumo, tudo dá errado.
Os quiproquós servem para Assayas tratar com sarcasmo uma
forma francesa de fazer cinema. O
"cinema de umbigo", financiado
pelo Estado para satisfazer uma
elite e alimentar o delírio de "autoria" dos cineastas, é explicitamente ridicularizado no filme.
À sua maneira, leve e incisiva,
Assayas explora a presença de
Maggie Cheung como atriz e personagem para reiterar uma de suas
descobertas como crítico.
Em 1984, ainda redator dos "Cahiers", Assayas co-dirigiu um número histórico sobre o cinema de
Hong Kong. Naquela época -é
bom lembrar-, ninguém tinha
ouvido falar de diretores como
John Woo e Tsui Hark, e Tarantino era ainda balconista de uma locadora de vídeos.
Na companhia do crítico Charles
Tesson, Assayas viajou para Hong
Kong e retornou, entre outros
achados, com ótimas interpretações de obscuros filmes de kung-fu
e uma meticulosa genealogia dos
guerreiros shao-lin. Os ortodoxos
receberam o número como uma
heresia, mas hoje poucos duvidam
que aquela usina de talentos já
funcionava a pleno vapor.
Cheung, portanto, cumpre em
"Irma Vep" o papel de encarnar a
inventividade dos filmes de Hong
Kong e arejar uma maneira poeirenta de fazer cinema.
O trabalho da câmera em "Irma
Vep" é o exemplo mais evidente
dessa referência. Ela possui o sentido da urgência típico das produções baratas de Hong Kong. O
tempo todo na mão, a câmera penetra nos espaços e vai do plano
geral ao close, não para exibir virtuosismo, mas para registrar a aceleração do tempo, deixar-se contaminar pela agilidade.
Diante da ameaça da dissipação,
Assayas escolhe não ficar no canto
resmungando contra a perda. Seu
filme corre atrás das coisas e gira
em todas as direções, tornando tudo o que acontece no mínimo interessante.
Filmado em menos de um mês,
"Irma Vep" é um documento sobre a urgência, uma forma contemporânea de dizer sim para os
riscos. E mostra que Assayas, além
de perspicaz como crítico, é um
ótimo cineasta.
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