UOL


São Paulo, sábado, 22 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

A prosa jazzística de um gigolô de imagens

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

No final do novo livro de Ronaldo Bressane, há um desenho semelhante ao do sistema solar, com órbitas elípticas e concêntricas. Sobre essas órbitas, há um série de pequenas circunferências, "planetas"" que correspondem aos títulos de contos pertencentes a três diferentes livros: "Os Infernos Possíveis" (Com-Arte, 1999), "10 Presídios de Bolso" (Altana, 2001) e "Céu de Lúcifer", que acaba de ser lançado pela Azougue Editorial.
Esse diagrama funciona aqui como síntese visual de uma trilogia que o escritor paulista chamou de "A Outra Comédia". O título ambicioso e o esquema cartográfico sugerem uma obra cerebral, erudita, até mesmo pretensiosa (quem ousaria reescrever a "Divina Comédia" de Dante?).
"Céu de Lúcifer", porém, mostra que Bressane está menos para a cosmologia dantesca do que para a escatologia, entendida em seu duplo sentido: como "tratado sobre excrementos" e como discussão teológica sobre o fim dos tempos e o juízo final.
Seus textos misturam paraíso, purgatório e inferno de modo anárquico. O próprio título do livro remete à idéia de um céu anterior à Queda, em que há um arcanjo que rivaliza com Deus, subvertendo as hierarquias da Criação.
Mas as referências bíblicas só servem para despistar o leitor. Bressane é um escritor pop. Suas personagens são jornalistas, publicitários e outsiders que encontram a salvação e a danação no sexo e nas drogas.
Todos sofrem de mal-estar diante da demanda da sociedade de consumo, mas toda tentativa de escape reconduz à cadeia autofágica de uma indústria que transforma até comportamentos desviantes em produtos da "cultura alternativa".
Nesse sentido, o primeiro conto do livro, "Jornal do Caos", vale pelo todo. É a história de um jornalista que resolve se submeter a uma abstinência de informação. Ele se fecha em seu apartamento, suprime todo contato com o mundo, não lê jornais, não abre correspondências, não vai a vernissages.
Mas seu cotidiano enclausurado continua assolado por demônios: entre doses de ecstasy e Lexotan ("pílulas graais de realidade"), fantasia o assassinato de um casal de velhinhos da vizinhança e lembra de coitos com socialites consumidoras de Xenical, realizando um "mix de Kurt Cobain com Samuel Beckett", angústia metafísica e niilismo grunge.
Em outro conto, "Assassinato em Matutu", um publicitário alterna orgias regadas a uísque e cocaína ao idílio de um retiro em Matutu (paraíso mineiro de ecologistas VIP). E, em "Psicotrópico", um festival na Amazônia transforma a selva em cenário de filme B, "caverna africana" em que índios, DJs e prostitutas caem no delírio químico ao som de música tecno e rumba.
Para Bressane, globalização e biodiversidade são mais uma embalagem na prateleira. Mas também podem significar terror econômico e político, como em "WTC/NY", em que uma "taxigirl" brasileira chamada Beatriz (referência à musa de Dante?) namora um poeta marroquino que desaparece nos escombros do World Trade Center.
O livro é permeado por um riso nervoso, agônico. Bressane não poupa nada. O executivo que sonha em ter uma Cherokee é tão cretino quanto o macrobiótico da Vila Madalena, ambos alienados de si mesmos por próteses imaginárias. Mas, como não sobra pedra sobre pedra nesse mundo de combustão midiática, o próprio escritor corre o risco de recair naquilo que critica. Não seria ele mais um "gigolô de imagens"?
Às vezes o estilo saturado e barroco de Bressane parece estéril, como na saga do macaco albino Butthole Kongo (paródia dos seriados de TV e HQs). Por isso, os melhores momentos do livro são os contos em que diferentes estratos de realidade são assimilados pela escrita -caso de "Quando Eu Morrer" (triângulo amoroso embalado pela gíria da malandragem e pelo samba de Noel Rosa) ou "Mind the Gap" (um brasileiro numa Londres underground), onde a relação entre registros linguísticos diversos cria uma espécie de prosa jazzística feita de dissonâncias e estridências.


Céu de Lúcifer
   
Autor: Ronaldo Bressane Editora: Azougue Quanto: R$ 24 (198 págs.)


Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Livros/lançamentos: "Nova Antologia" redimensiona Vinicius
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.