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RODAPÉ
A prosa jazzística de um gigolô de imagens
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
No final do novo livro de Ronaldo Bressane, há um desenho semelhante ao do sistema solar, com órbitas elípticas e concêntricas. Sobre essas órbitas, há
um série de pequenas circunferências, "planetas"" que correspondem aos títulos de contos pertencentes a três diferentes livros:
"Os Infernos Possíveis" (Com-Arte, 1999), "10 Presídios de Bolso" (Altana, 2001) e "Céu de Lúcifer", que acaba de ser lançado pela
Azougue Editorial.
Esse diagrama funciona aqui
como síntese visual de uma trilogia que o escritor paulista chamou
de "A Outra Comédia". O título
ambicioso e o esquema cartográfico sugerem uma obra cerebral,
erudita, até mesmo pretensiosa
(quem ousaria reescrever a "Divina Comédia" de Dante?).
"Céu de Lúcifer", porém, mostra que Bressane está menos para
a cosmologia dantesca do que para a escatologia, entendida em seu
duplo sentido: como "tratado sobre excrementos" e como discussão teológica sobre o fim dos tempos e o juízo final.
Seus textos misturam paraíso,
purgatório e inferno de modo
anárquico. O próprio título do livro remete à idéia de um céu anterior à Queda, em que há um arcanjo que rivaliza com Deus, subvertendo as hierarquias da Criação.
Mas as referências bíblicas só
servem para despistar o leitor.
Bressane é um escritor pop. Suas
personagens são jornalistas, publicitários e outsiders que encontram a salvação e a danação no sexo e nas drogas.
Todos sofrem de mal-estar
diante da demanda da sociedade
de consumo, mas toda tentativa
de escape reconduz à cadeia autofágica de uma indústria que transforma até comportamentos desviantes em produtos da "cultura
alternativa".
Nesse sentido, o primeiro conto
do livro, "Jornal do Caos", vale
pelo todo. É a história de um jornalista que resolve se submeter a
uma abstinência de informação.
Ele se fecha em seu apartamento,
suprime todo contato com o
mundo, não lê jornais, não abre
correspondências, não vai a vernissages.
Mas seu cotidiano enclausurado continua assolado por demônios: entre doses de ecstasy e Lexotan ("pílulas graais de realidade"), fantasia o assassinato de um
casal de velhinhos da vizinhança e
lembra de coitos com socialites
consumidoras de Xenical, realizando um "mix de Kurt Cobain
com Samuel Beckett", angústia
metafísica e niilismo grunge.
Em outro conto, "Assassinato
em Matutu", um publicitário alterna orgias regadas a uísque e cocaína ao idílio de um retiro em
Matutu (paraíso mineiro de ecologistas VIP). E, em "Psicotrópico", um festival na Amazônia
transforma a selva em cenário de
filme B, "caverna africana" em
que índios, DJs e prostitutas caem
no delírio químico ao som de música tecno e rumba.
Para Bressane, globalização e
biodiversidade são mais uma embalagem na prateleira. Mas também podem significar terror econômico e político, como em
"WTC/NY", em que uma "taxigirl" brasileira chamada Beatriz
(referência à musa de Dante?) namora um poeta marroquino que
desaparece nos escombros do
World Trade Center.
O livro é permeado por um riso
nervoso, agônico. Bressane não
poupa nada. O executivo que sonha em ter uma Cherokee é tão
cretino quanto o macrobiótico da
Vila Madalena, ambos alienados
de si mesmos por próteses imaginárias. Mas, como não sobra pedra sobre pedra nesse mundo de
combustão midiática, o próprio
escritor corre o risco de recair naquilo que critica. Não seria ele
mais um "gigolô de imagens"?
Às vezes o estilo saturado e barroco de Bressane parece estéril,
como na saga do macaco albino
Butthole Kongo (paródia dos seriados de TV e HQs). Por isso, os
melhores momentos do livro são
os contos em que diferentes estratos de realidade são assimilados
pela escrita -caso de "Quando
Eu Morrer" (triângulo amoroso
embalado pela gíria da malandragem e pelo samba de Noel Rosa)
ou "Mind the Gap" (um brasileiro
numa Londres underground),
onde a relação entre registros linguísticos diversos cria uma espécie de prosa jazzística feita de dissonâncias e estridências.
Céu de Lúcifer
Autor: Ronaldo Bressane
Editora: Azougue
Quanto: R$ 24 (198 págs.)
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