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análise
Altman foi independente de verdade
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Com a morte de Robert Altman, Hollywood perde o que se
poderia chamar de sua "exceção cultural". Num cinema
cada vez mais dominado pelas vicissitudes comerciais,
Altman estabeleceu-se, desde 1992, quando dirigiu "O
Jogador", como o rebelde a
quem tudo se consente.
"O Jogador", convém lembrar, tratava de um produtor
de cinema e exprimia, em
larga medida, as queixas dos
realizadores americanos
com a nova geração de produtores, que julgam quase
sempre despreparada. O lado
iconoclasta sempre acompanhou Altman. Mas "O Jogador" era também um filme
cheio de planos-sequência e
corria todos os riscos que
Hollywood detesta correr.
Com tudo isso, "O Jogador"
emplacou e foi até indicado
ao Oscar.
O êxito funcionou como
uma espécie de "habeas corpus" que lhe permitiu depois
realizar no ano seguinte
"Short Cuts - Cenas da Vida",
em que radicalizava o uso da
narrativa fundada sobre o
entrelaçamento de várias
histórias.
Com o novo sucesso, Robert Altman permitiu-se cutucar com vara curta o mundo "fashion", em "Prêt-à-Porter" (1994). Um procedimento típico de Altman: caminhava contra a corrente,
colocando suas posições à
frente de tudo.
Os filmes que vieram depois confirmam essa maneira de se postar diante das coisas: mais ou menos bem-sucedidos, corresponderam invariavelmente a suas opções
pessoais.
Desde o o começo, ou quase, Altman recusou-se a aceitar as armadilhas do sucesso.
Depois do início de carreira
como roteirista e de uma sólida formação em séries de
TV, nos anos 50, e mesmo de
dirigir alguns filmes que não
levaram sua carreira a deslanchar, Altman consagra-se
em 1970, num momento de
ampla contestação à Guerra
do Vietnã, com a comédia
"M*A*S*H", que demolia a
um só tempo a guerra (da
Coréia, na ficção, mas todos
entenderam do que se tratava), o militarismo e o cinema
de guerra.
Em vez de se deixar levar
pelo sucesso, Altman assinou em seguida uma série de
filmes crescentemente complexos, não raro obscuros,
como se precisasse exorcizar
o êxito alcançado. Demoliu
gêneros clássicos, como o faroeste em "Quando É Preciso Ser Homem", trouxe a política ao musical ("Nashville", 1975), satirizou o matrimônio ("Cerimônia de Casamento", 1978).
O fracasso de "Quinteto",
logo a seguir, parecia anunciar o fim de um ciclo: o espaço do cinema autoral, de arte
e ensaio, se estreitava em favor do "blockbuster". Altman entra numa "trip" extremamente pessoal que culmina em filmes absolutamente anticomerciais, como
"O Exército Inútil" (1983),
que parecem indicar uma
crise pessoal que se adicionava às mudanças por que passava o cinema americano.
O ressurgimento em grande estilo, com "O Jogador", o
fixava como referência cultural e como que consagrava
a aceitação do artista rebelde, do sobrevivente dos anos
de iconoclastia. Nos últimos
anos, nada foi mais inflacionado no cinema do que a palavra "independente". Altman foi, até a morte, independente de verdade.
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