São Paulo, quarta-feira, 22 de novembro de 2006

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análise

Altman foi independente de verdade

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Com a morte de Robert Altman, Hollywood perde o que se poderia chamar de sua "exceção cultural". Num cinema cada vez mais dominado pelas vicissitudes comerciais, Altman estabeleceu-se, desde 1992, quando dirigiu "O Jogador", como o rebelde a quem tudo se consente.
"O Jogador", convém lembrar, tratava de um produtor de cinema e exprimia, em larga medida, as queixas dos realizadores americanos com a nova geração de produtores, que julgam quase sempre despreparada. O lado iconoclasta sempre acompanhou Altman. Mas "O Jogador" era também um filme cheio de planos-sequência e corria todos os riscos que Hollywood detesta correr. Com tudo isso, "O Jogador" emplacou e foi até indicado ao Oscar.
O êxito funcionou como uma espécie de "habeas corpus" que lhe permitiu depois realizar no ano seguinte "Short Cuts - Cenas da Vida", em que radicalizava o uso da narrativa fundada sobre o entrelaçamento de várias histórias.
Com o novo sucesso, Robert Altman permitiu-se cutucar com vara curta o mundo "fashion", em "Prêt-à-Porter" (1994). Um procedimento típico de Altman: caminhava contra a corrente, colocando suas posições à frente de tudo.
Os filmes que vieram depois confirmam essa maneira de se postar diante das coisas: mais ou menos bem-sucedidos, corresponderam invariavelmente a suas opções pessoais.
Desde o o começo, ou quase, Altman recusou-se a aceitar as armadilhas do sucesso. Depois do início de carreira como roteirista e de uma sólida formação em séries de TV, nos anos 50, e mesmo de dirigir alguns filmes que não levaram sua carreira a deslanchar, Altman consagra-se em 1970, num momento de ampla contestação à Guerra do Vietnã, com a comédia "M*A*S*H", que demolia a um só tempo a guerra (da Coréia, na ficção, mas todos entenderam do que se tratava), o militarismo e o cinema de guerra.
Em vez de se deixar levar pelo sucesso, Altman assinou em seguida uma série de filmes crescentemente complexos, não raro obscuros, como se precisasse exorcizar o êxito alcançado. Demoliu gêneros clássicos, como o faroeste em "Quando É Preciso Ser Homem", trouxe a política ao musical ("Nashville", 1975), satirizou o matrimônio ("Cerimônia de Casamento", 1978).
O fracasso de "Quinteto", logo a seguir, parecia anunciar o fim de um ciclo: o espaço do cinema autoral, de arte e ensaio, se estreitava em favor do "blockbuster". Altman entra numa "trip" extremamente pessoal que culmina em filmes absolutamente anticomerciais, como "O Exército Inútil" (1983), que parecem indicar uma crise pessoal que se adicionava às mudanças por que passava o cinema americano.
O ressurgimento em grande estilo, com "O Jogador", o fixava como referência cultural e como que consagrava a aceitação do artista rebelde, do sobrevivente dos anos de iconoclastia. Nos últimos anos, nada foi mais inflacionado no cinema do que a palavra "independente". Altman foi, até a morte, independente de verdade.


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