São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"PARQUE DOS CERVOS"

Romance retrata a decadência hollywoodiana

Narrador de Norman Mailer frustra projeto ambicioso

RINALDO GAMA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aclamado em 1948, quando estreou com o romance "Os Nus e os Mortos", como o maior talento literário americano do pós-guerra, Norman Mailer dividiu a crítica ao publicar sua terceira obra no gênero, "Parque dos Cervos" (1955). Embora tenha sido considerado superior a "Barbary Shore" (1951), seu segundo romance, "Parque dos Cervos", que acaba de sair pela editora Record, esteve longe da unanimidade da estréia. Na mesma semana foi destruído pela revista "Time" e saudado com entusiasmo pela "Newsweek" (resenhas reproduzidas na edição brasileira).
Passadas quase cinco décadas de seu aparecimento, o polêmico romance de Mailer, 78, pode ser agora analisado com maior serenidade. É um exagero afirmar, como fez a "Time", que "não há muito a entender nesta narrativa sobre a vida da fauna cinematográfica da Costa Oeste". Contudo, não se pode deixar de reconhecer que se trata de um livro desigual, distante, portanto, da classificação de "grande romance" que lhe atribuiu o artigo da "Newsweek".
"Parque dos Cervos" teve uma trajetória atribulada. Num posfácio desconcertante de sinceridade, o autor conta o seu empenho para tentar salvar o romance. Após recusar uma primeira versão do livro, o editor de Mailer concordara, de má vontade, em publicar a segunda. Porém cismou com uma passagem que punha em cena um velho produtor de cinema e uma garota de programa. Sob argumentos moralistas, tentou censurá-la.
Como o ficcionista se recusou a eliminar o parágrafo, o editor sentiu-se no direito de anular o contrato que tinha com ele. Talvez quisesse apenas um pretexto para se livrar de um romance que considerava ruim; o fato é que, a partir de tal desfecho, Mailer se viu batendo de porta em porta atrás de quem acolhesse o livro.
Recusado por seis editoras, ele acabaria aceito pela Putnam. Na hora da revisão das provas, seria a vez de o autor rejeitar seu próprio trabalho. "Depois de três anos vivendo com o livro, eu podia finalmente admitir que o estilo estava errado, que eu vinha estrangulando a vida do meu romance numa prosa poética que era falsa em relação à vida de meus personagens e especialmente falsa em relação à vida de meu narrador", anota Norman Mailer no posfácio. Durante meses, sob um intenso consumo de drogas, ele reviu "Parque dos Cervos" "frase por frase, palavra por palavra". Com isso, "o estilo perdeu o verniz, tornou-se áspero e, posso dizer, real", acredita.
Nunca se saberá o quanto o romance mudou, o que importa é o resultado. O maior problema do livro, conforme detectara o ficcionista, era -e continuou sendo- o narrador, um certo Sergius O'Shaugnessy, ex-tenente da Força Aérea, crescido num orfanato e traumatizado porque lançara bombas em aldeias coreanas.
Com US$ 14 mil no bolso, Sergius instala-se em Desert D'Or, um luxuoso balneário a 380 quilômetros de Hollywood. Lá, entra em contato com um cineasta atormentado pelo Comitê de Atividades Subversivas (Charles Francis Eitel), sua ex-mulher, uma atriz egocêntrica (Lulu Meyers), a nova companheira (Elena Esposito), um típico chefe de estúdio (Herman Teppis), agentes, prostitutas, homossexuais. Envolvido nesse mundo, O'Shaugnessy decide tornar-se escritor: por isso lemos "Parque dos Cervos".
Se a prosa do ex-tenente da Força Aérea ficou "mais real" depois da cirurgia, sua posição diante daquilo que ele narra deixa a desejar. Da maneira como o livro está construído, a onisciência exibida pelo narrador mostra-se, em certas passagens, descabida. Nessas horas, a sensação é de que teria sido melhor se Mailer houvesse transformado Sergius O'Shaugnessy em mais um dos protagonistas do romance e adotado a narrativa em terceira pessoa.
Há que se admitir, entretanto, que alguns capítulos são impecáveis. Um exemplo é o que mostra Herman Teppis tentando convencer o ator Teddy Pope e Lulu Meyers a se casarem. Detalhe: Pope é homossexual e Lulu acabou de se casar com outro.
Apesar do grande número de personagens masculinos, as mulheres destacam-se. Não por uma suposta onipotência, mas porque conseguem revelar maior autenticidade. Considerando que "Parque dos Cervos" é um painel da decadência, não por acaso seu título se refere a um balneário sexual mantido por Luís 15 numa França decadente, às vésperas da Revolução -essa talvez seja a sua lição mais importante.
Com referências explícitas a Ernest Hemingway e implícitas a Nathanael West, "Parque dos Cervos" era, na origem, um projeto ambicioso. Abatido com tudo o que aconteceu, Norman Mailer só voltaria a publicar outro livro de ficção dez anos depois dele. Desde então superou-o várias vezes confirmando que a consagração de crítica e público experimentada por "Os Nus e os Mortos" não fora um lamentável equívoco.


Rinaldo Gama é editor-executivo dos "Cadernos de Literatura Brasileira" e autor de "O Guardador de Signos: Caeiro em Pessoa" (Perspectiva/ IMS)



Parque dos Cervos
The Deer Park
   
Autor: Norman Mailer
Tradutor: Alves Calado
Editora: Record
Quanto: R$ 40 (392 págs.)




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