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Crítica/"Cabeça Tubarão"
Romance de Hall é pretensa literatura
Estréia do autor britânico peca por excesso de citações, que vão de "Matrix" a Júlio Verne, ficando só no entretenimento
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
A passagem do milênio
provocou avalanches
de livros apocalípticos
de todo tipo, inclusive ficcionais. Ultrapassado o pesadelo
numérico da virada do século,
porém, o medo de hecatombes
continua merecendo especulações, como em "Cabeça Tubarão", romance de estréia do britânico Steven Hall.
Pertencente a um tipo específico de ficção
futurológica, aquela que parte
do princípio de que o universo é
uma malha composta por letras
e números de proporções infinitesimais, o livro de Hall traz
algumas soluções formais interessantes, além de ser uma verdadeira máquina de citações.
Na história, Eric Sanderson
desperta de sono profundo
completamente desmemoriado. Auxiliado por sua médica,
dra. Randle, ele descobre que
foi vítima de acidente marítimo
onde sua namorada morreu e
sofre agora de um distúrbio dissociativo que faz com que não
se lembre de nada.
Eric então começa a encontrar cartas escritas no passado
por ele próprio, assinadas por
"Eric Sanderson Número Um".
É impossível não deixar de remeter esse aspecto da trama ao
que acontece com Leonard
Shelby em "Amnésia" (2001),
filme de Christopher Nolan.
Assim como ocorre com
Shelby, Eric é orientado pelas
mensagens vindas de um período em que ainda estava consciente. Essa semelhança cessa
aqui, mas muitas outras surgirão.
De acordo com as pistas, Eric
Sanderson Número Dois está
sendo perseguido por um tubarão ludovício, predador metafísico que se alimenta de memórias e sentimentos. Composto
por palavras e números, o animal foi enviado por Mycroft
Ward, vilão que venceu a morte
"imprimindo" sua personalidade codificada em centenas de
outros Mycroft Wards. A semelhança com o multitudinário sr.
Smith de "Matrix", o filme dos
irmãos Wachowski, não é coincidência: assim como nas dezenas de outras citações, o autor
parece a todo tempo estar dando piscadelas ao leitor, dizendo:
"Viu? O universo é mesmo
composto pelo que consumimos, sejam filmes ou livros.
Agora quero ver se você descobre tudo o que vou citar". Sucedem-se referências a livros de
Paul Auster, Haruki Murakami,
Borges e Italo Calvino e também a outros filmes, como "Tubarão", de Steven Spielberg.
E chega o ponto em que o leitor começa a sentir leve indigestão, mas segue adiante, pois
quer descobrir, afinal, o que
realmente aconteceu no passado de Eric 1 e de sua namorada
morta, Clio, e o que acontecerá
com Eric 2 e sua namorada viva, Scout, além de como irão se
virar Ian, o gato gordo de Eric
-Garfield?-, e o dr. Trey Fidorous, o maior especialista do
mundo em peixes conceituais.
Depois disso a narrativa ainda
envereda por Júlio Verne (primeiro "Viagem ao Centro da
Terra" e, então, "20 Mil Léguas
Submarinas") e, no final,
"Moby Dick".
Nessa altura o leitor se lembrará de Ibn-Arabi (1165-1240),
o filósofo sufi que afirmou que
"O universo é um imenso livro".
Excessivo em citações e em
desventuras, "Cabeça Tubarão" não passa de bom entretenimento disfarçado de artefato
literário. Steven Hall promete,
mas não cumpre.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra).
CABEÇA TUBARÃO
Autor: Steven Hall
Tradução: Vanessa Barbara
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 53 (480 págs.)
Avaliação: regular
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