São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2007

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Crítica/"Cabeça Tubarão"

Romance de Hall é pretensa literatura

Estréia do autor britânico peca por excesso de citações, que vão de "Matrix" a Júlio Verne, ficando só no entretenimento

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

A passagem do milênio provocou avalanches de livros apocalípticos de todo tipo, inclusive ficcionais. Ultrapassado o pesadelo numérico da virada do século, porém, o medo de hecatombes continua merecendo especulações, como em "Cabeça Tubarão", romance de estréia do britânico Steven Hall.
Pertencente a um tipo específico de ficção futurológica, aquela que parte do princípio de que o universo é uma malha composta por letras e números de proporções infinitesimais, o livro de Hall traz algumas soluções formais interessantes, além de ser uma verdadeira máquina de citações.
Na história, Eric Sanderson desperta de sono profundo completamente desmemoriado. Auxiliado por sua médica, dra. Randle, ele descobre que foi vítima de acidente marítimo onde sua namorada morreu e sofre agora de um distúrbio dissociativo que faz com que não se lembre de nada. Eric então começa a encontrar cartas escritas no passado por ele próprio, assinadas por "Eric Sanderson Número Um".
É impossível não deixar de remeter esse aspecto da trama ao que acontece com Leonard Shelby em "Amnésia" (2001), filme de Christopher Nolan. Assim como ocorre com Shelby, Eric é orientado pelas mensagens vindas de um período em que ainda estava consciente. Essa semelhança cessa aqui, mas muitas outras surgirão.
De acordo com as pistas, Eric Sanderson Número Dois está sendo perseguido por um tubarão ludovício, predador metafísico que se alimenta de memórias e sentimentos. Composto por palavras e números, o animal foi enviado por Mycroft Ward, vilão que venceu a morte "imprimindo" sua personalidade codificada em centenas de outros Mycroft Wards. A semelhança com o multitudinário sr. Smith de "Matrix", o filme dos irmãos Wachowski, não é coincidência: assim como nas dezenas de outras citações, o autor parece a todo tempo estar dando piscadelas ao leitor, dizendo: "Viu? O universo é mesmo composto pelo que consumimos, sejam filmes ou livros. Agora quero ver se você descobre tudo o que vou citar". Sucedem-se referências a livros de Paul Auster, Haruki Murakami, Borges e Italo Calvino e também a outros filmes, como "Tubarão", de Steven Spielberg.
E chega o ponto em que o leitor começa a sentir leve indigestão, mas segue adiante, pois quer descobrir, afinal, o que realmente aconteceu no passado de Eric 1 e de sua namorada morta, Clio, e o que acontecerá com Eric 2 e sua namorada viva, Scout, além de como irão se virar Ian, o gato gordo de Eric -Garfield?-, e o dr. Trey Fidorous, o maior especialista do mundo em peixes conceituais. Depois disso a narrativa ainda envereda por Júlio Verne (primeiro "Viagem ao Centro da Terra" e, então, "20 Mil Léguas Submarinas") e, no final, "Moby Dick".
Nessa altura o leitor se lembrará de Ibn-Arabi (1165-1240), o filósofo sufi que afirmou que "O universo é um imenso livro". Excessivo em citações e em desventuras, "Cabeça Tubarão" não passa de bom entretenimento disfarçado de artefato literário. Steven Hall promete, mas não cumpre.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra).

CABEÇA TUBARÃO
Autor:
Steven Hall
Tradução: Vanessa Barbara
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 53 (480 págs.)
Avaliação: regular


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