São Paulo, sábado, 22 de dezembro de 2007

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Crítica/"A Marcha"

Composição dos personagens é o destaque de novo livro de Doctorow

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Ganhador do prêmio PEN/Faulkner de 2006, o novo romance de E.L. Doctorow, autor do aclamado "Ragtime", trata da Guerra da Secessão, que, de 1861 a 1865, rachou a nação ao meio, entre nortistas e sulistas, defensores da União e os da Confederação, deixando um rastro de terror, morte e destruição jamais visto na história norte-americana.
O assunto da guerra não é novo. Os leitores devem lembrar do famoso livro de Margaret Mitchell, "E o Vento Levou...", ou de "Guerra e Paz", de Leon Tolstói, por exemplo; ou ainda da mãe de todas as narrativas bélicas no Ocidente, a "Ilíada", de Homero.
Como a "Ilíada", este romance se inicia no meio da ação, em plena batalha, e acompanha o destino de um punhado de personagens por intermédio do qual um quadro mais amplo se delineia. Por esse aspecto, a luta é uma abstração. Não existe sem a perspectiva humana. São os sentimentos, frustrações e anseios dos seres humanos que interessam e, através destes, os significados despontam.
Trata-se de significados corrediços, que se deslocam como a longa marcha das tropas do Norte sobre os Estados do Sul.
É de um médico da União a melhor imagem da campanha. Ele a compara a uma criatura extensa, inumana e tentacular, dotada de centenas de milhares de pés, que consome tudo o que encontra em seu caminho e cujo cérebro, minúsculo, corresponde ao general que a maioria dos seres que compõem o organismo nunca viu.
Doctorow esmera-se na composição dos personagens; nesse investimento reside a força do romance, de resto composto de modo convencional. Há a escrava quase branca, filha bastarda de um proprietário de terras sulista, que defende sua virgindade como uma insígnia contra a conspurcação que lhe marcara o nascimento.
Há o general, que surge de forma quase ridícula montado em seu pequeno cavalo e que só se satisfaz quando comanda a marcha insensata.

Jovens renegados
E há a figura picaresca de dois jovens renegados, que, agindo de boa fé mas premidos por questões básicas de sobrevivência, passam o romance trocando de lado, ora na defesa das forças dos Sul, ora combatendo pelo exército do Norte.
São eles que melhor representam a estratégia do romance, que também segue aqui e acolá, de um lado e de outro, para mostrar várias perspectivas.
Também simbolizam a falta de sentido da guerra, de qualquer guerra, que, quando vista a posteriori, parece adquirir sentido, mas, quando se está em seu centro, assemelha-se mais a uma barafunda de forças antagônicas e intercambiáveis.
Não há deuses como na "Ilíada". Os homens aqui têm de se haver com seus parcos recursos. Têm de lidar com a marcha insólita e com os sentidos imprecisos. Têm de procurar, como diz o mesmo personagem do médico, estabilidade no que é absurdo, desenraizado e itinerante. Uma boa idéia moderna da existência.


A MARCHA
Autor:
E.L. Doctorow
Tradução: Roberto Muggiati
Editora: Record
Quanto: R$ 39 (416 págs.)
Avaliação: bom


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