|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/"A Marcha"
Composição dos personagens é o destaque de novo livro de Doctorow
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Ganhador do prêmio
PEN/Faulkner de
2006, o novo romance
de E.L. Doctorow, autor do
aclamado "Ragtime", trata da
Guerra da Secessão, que, de
1861 a 1865, rachou a nação ao
meio, entre nortistas e sulistas,
defensores da União e os da
Confederação, deixando um
rastro de terror, morte e destruição jamais visto na história
norte-americana.
O assunto da guerra não é novo. Os leitores devem lembrar
do famoso livro de Margaret
Mitchell, "E o Vento Levou...",
ou de "Guerra e Paz", de Leon
Tolstói, por exemplo; ou ainda
da mãe de todas as narrativas
bélicas no Ocidente, a "Ilíada",
de Homero.
Como a "Ilíada", este romance se inicia no meio da ação, em
plena batalha, e acompanha o
destino de um punhado de personagens por intermédio do
qual um quadro mais amplo se
delineia. Por esse aspecto, a luta é uma abstração. Não existe
sem a perspectiva humana. São
os sentimentos, frustrações e
anseios dos seres humanos que
interessam e, através destes, os
significados despontam.
Trata-se de significados corrediços, que se deslocam como
a longa marcha das tropas do
Norte sobre os Estados do Sul.
É de um médico da União a melhor imagem da campanha. Ele
a compara a uma criatura extensa, inumana e tentacular,
dotada de centenas de milhares
de pés, que consome tudo o que
encontra em seu caminho e cujo cérebro, minúsculo, corresponde ao general que a maioria
dos seres que compõem o organismo nunca viu.
Doctorow esmera-se na
composição dos personagens;
nesse investimento reside a
força do romance, de resto
composto de modo convencional. Há a escrava quase branca,
filha bastarda de um proprietário de terras sulista, que defende sua virgindade como uma
insígnia contra a conspurcação
que lhe marcara o nascimento.
Há o general, que surge de forma quase ridícula montado em
seu pequeno cavalo e que só se
satisfaz quando comanda a
marcha insensata.
Jovens renegados
E há a figura picaresca de
dois jovens renegados, que,
agindo de boa fé mas premidos
por questões básicas de sobrevivência, passam o romance
trocando de lado, ora na defesa
das forças dos Sul, ora combatendo pelo exército do Norte.
São eles que melhor representam a estratégia do romance,
que também segue aqui e acolá,
de um lado e de outro, para
mostrar várias perspectivas.
Também simbolizam a falta
de sentido da guerra, de qualquer guerra, que, quando vista a
posteriori, parece adquirir sentido, mas, quando se está em
seu centro, assemelha-se mais a uma barafunda de forças antagônicas e intercambiáveis.
Não há deuses como na "Ilíada". Os homens aqui têm de se
haver com seus parcos recursos. Têm de lidar com a marcha
insólita e com os sentidos imprecisos. Têm de procurar, como diz o mesmo personagem
do médico, estabilidade no que
é absurdo, desenraizado e itinerante. Uma boa idéia moderna da existência.
A MARCHA
Autor: E.L. Doctorow
Tradução: Roberto Muggiati
Editora: Record
Quanto: R$ 39 (416 págs.)
Avaliação: bom
Texto Anterior: Crítica/"Cabeça Tubarão": Romance de Hall é pretensa literatura Próximo Texto: Crítica/"A Cidade e a Infância": Obra de Luandino Vieira traz contrastes da Angola colonial Índice
|