São Paulo, sábado, 23 de janeiro de 1999

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Lições do abismo: a vida é bela

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Quando Gustavo Corção morreu, o grande Barbosa Lima Sobrinho, que ontem completou 102 anos e dele não gostava, citou Voltaire: "A maior homenagem que se pode prestar a um morto é a verdade". Corção também completaria 102 anos em dezembro passado, se não tivesse morrido tranquilamente, quando dormia, há 21 anos.
Fui um dos muitos maltratados pela fúria de Corção. Engenheiro politécnico por formação, cruzado por devoção, da ala mais extremada do integrismo católico, converteu-se em 1968 no guru de um grupo de militares da linha dura. Inclusive do meu carcereiro, o então coronel César Montagna. Era contra tudo que parecesse novo, inclusive a Revolução Francesa.
O título do seu único romance, "Lições do Abismo", muito mais do que a mensagem ou enredo, sempre me fascinou. Há títulos assim, supra-sumos da obra, que os marqueteiros literários hoje rejeitariam. Com eles, Borges montaria uma curiosa biblioteca.
A noção de abismo é, por si, insólita. Numa cultura edênica e festiva, inebriante e inebriada, quase não há lugar para a percepção do desenlace. Nossa dramaturgia individual não se deixa fascinar nem aterrar pela colisão inevitável. Miguel de Unamuno (1864-1936), com o seu famoso "Del Sentimiento Trágico de la Vida", deixou sequelas insignificantes em nosso mundo, seu clássico desapareceu das livrarias ou alfarrabistas. A culpa, se culpa há, não é da natureza, povoamento, cartografia. É também da civilização que gostosamente importamos da América do Norte -visual, trepidante, banal. "Abolimos a tragédia", declarou o crítico de cinema americano Jack Kroll à jornalista Lúcia Guimarães ("O Globo", 13/12/98). "A tragédia é a grande contribuição que nós, ocidentais, fizemos à cultura."
Corção teve a sensibilidade para vislumbrar o abismo, o desespero, a fatalidade. Mas teve a grandeza de sugerir que no fundo do poço há lugar para exercer um aprendizado.
Retornei de uma rápida viagem pela Europa surpreendido com o clima de ferocidade aqui imperante. Meu último texto foi escrito sob a impressão de que o diálogo, além de imperioso, era possível. Na volta, encontrei a pauleira. O governador Itamar Franco, nada mineiro na sua estréia como executivo eleito, investia num galope revanchista e, seus detratores na imprensa, jogando sujo como sempre.
Não cabe aqui sentenciar se a moratória unilateral por ele anunciada despoletou (como se diz em Portugal) o furacão que abalou nossa moeda. Importante registrar que o pai ou avô do Real, querendo ou não, deu-lhe um safanão quase fatal. O governador Olívio Dutra, politicamente mais radical e com uma imagem injusta de bravateador, optou, no entanto, pelas regras do jogo: preferiu enfrentar o governo federal apelando pela Justiça.
O confronto político não é obrigatoriamente violento. Ainda mais neste esmaecer da Era das Ideologias, onde as divergências tendem a concentrar-se no modo de fazer. Nosso tribalismo não precisa necessariamente encaminhar-se para o canibalismo. A primorosa pesquisa histórica de Lilia Moritz Schwarcz "As Barbas do Imperador" (Cia. das Letras, 1998, 623 págs.), sobre a vida e os tempos de d. Pedro 2º, reconstitui ao vivo, como se fosse um filme, nossa única idade de ouro, matriz da modernidade brasileira. O imperador, no entanto, era chamado de "Pedro Banana", e os mais ferrenhos opositores devotavam-lhe respeito.
A ruidosa "rentrée" de Itamar lembrou-me logo a história de Sansão, um dos mitos trágicos do Velho Testamento. O nome vem de Sol, fonte da descomunal força. Diz a lenda que estraçalhou um leão com as suas mãos e, por vingança, matou mil filisteus com apenas um osso de asno. Seu fraco, as mulheres: a sedutora Dalila (de "laila", noite) descobriu que o fabuloso vigor provinha da basta cabeleira e, depois de uma noite de amor, cortou-lhe as madeixas. Foi capturado pelos inimigos que o cegaram.
Mais tarde, por diversão, os filisteus o trouxeram para uma festa religiosa num de seus templos. Cabelos já crescidos, duplamente cego -sem olhos e tomado pela raiva-, Sansão derrubou as colunas do templo matando os 3.000 presentes. Morreu junto (Juízes, 13-16). O gigante fascinou Milton, Rembrandt, Voltaire, Blake. Olhado de várias maneiras, inclusive como símbolo do poder insensato, ensandecido, raivoso. E suicida.
No meu carnê de viagem pela Europa, encontro anotações curiosas. Para explicar seu fraco desempenho ao longo do ano que findava, o tetra-campeão da Fórmula 1, Alain Prost, filosofou como bom francês: "Le problème est la impatience" ("Le Figaro", 29/12/98, p.13). O ás do volante percebeu que a velocidade do bólido nada tem a ver com a sua velocidade interior. A impaciência e seus subprodutos, inclusive a raiva, é irmã do desespero, filhos da mesma incapacidade de esperar. E operar com eficácia.
Um dia antes, uma das figuras mais interessantes do catolicismo europeu, o humanista Jean-Marie Lustiger (nascido e criado como judeu, hoje cardeal-arcebispo de Paris), no mesmo clima de balanço anual, dizia: "Para ter esperança não é preciso tomar tranquilizantes" (mesmo jornal, 1ª pág.). Lustiger não queria incursionar pelo terreno da psicoterapia ou da auto-ajuda. Embora situado no extremo oposto das posições de Corção, avalia as lições do abismo. Em meio às angústias milenaristas e apocalípticas que se estendem das artes à economia, há uma luz no fim do túnel. Para percebê-la, basta disposição.
Esta é a maravilhosa mensagem de "A Vida é Bela", de Roberto Benigni, autor, ator e diretor que foi buscar nas memórias do revolucionário Leon Trótski o mote para um dos mais extraordinários filmes sobre o Holocausto. Porque é uma comédia que gira em torno de um tenebroso episódio da história da humanidade, porque é um hino à vida a partir da exposição da bestialidade nazista, porque transcende à questão do anti-semitismo e faz do amor -todos os amores- saída para enfrentar os malefícios.
Nosso "Central do Brasil" vai enfrentá-lo na votação do Oscar. Ambos têm como pivô uma criança, ambos giram em torno do faz-de-conta, acreditam que ilusão é um jogo que pode dar certo. Há um sentido na vida, desde que tenhamos a lucidez para perceber o que faz sentido. Pode-se ganhar, perdendo. Mesmo à beira do precipício.
Porque ofusca e embaralha, a ira, mesmo sagrada, pode ser diabólica.



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