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Lições do abismo: a vida é bela
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Quando Gustavo Corção
morreu, o grande Barbosa Lima Sobrinho, que ontem completou 102 anos e dele não gostava, citou Voltaire: "A maior
homenagem que se pode prestar a um morto é a verdade".
Corção também completaria
102 anos em dezembro passado, se não tivesse morrido tranquilamente, quando dormia,
há 21 anos.
Fui um dos muitos maltratados pela fúria de Corção. Engenheiro politécnico por formação, cruzado por devoção, da
ala mais extremada do integrismo católico, converteu-se
em 1968 no guru de um grupo
de militares da linha dura. Inclusive do meu carcereiro, o então coronel César Montagna.
Era contra tudo que parecesse
novo, inclusive a Revolução
Francesa.
O título do seu único romance, "Lições do Abismo", muito
mais do que a mensagem ou
enredo, sempre me fascinou.
Há títulos assim, supra-sumos
da obra, que os marqueteiros
literários hoje rejeitariam.
Com eles, Borges montaria
uma curiosa biblioteca.
A noção de abismo é, por si,
insólita. Numa cultura edênica
e festiva, inebriante e inebriada, quase não há lugar para a
percepção do desenlace. Nossa
dramaturgia individual não se
deixa fascinar nem aterrar pela colisão inevitável. Miguel de
Unamuno (1864-1936), com o
seu famoso "Del Sentimiento
Trágico de la Vida", deixou sequelas insignificantes em nosso
mundo, seu clássico desapareceu das livrarias ou alfarrabistas. A culpa, se culpa há, não é
da natureza, povoamento, cartografia. É também da civilização que gostosamente importamos da América do Norte -visual, trepidante, banal. "Abolimos a tragédia", declarou o crítico de cinema americano Jack
Kroll à jornalista Lúcia Guimarães ("O Globo", 13/12/98).
"A tragédia é a grande contribuição que nós, ocidentais, fizemos à cultura."
Corção teve a sensibilidade
para vislumbrar o abismo, o
desespero, a fatalidade. Mas teve a grandeza de sugerir que no
fundo do poço há lugar para
exercer um aprendizado.
Retornei de uma rápida viagem pela Europa surpreendido
com o clima de ferocidade aqui
imperante. Meu último texto
foi escrito sob a impressão de
que o diálogo, além de imperioso, era possível. Na volta,
encontrei a pauleira. O governador Itamar Franco, nada
mineiro na sua estréia como
executivo eleito, investia num
galope revanchista e, seus detratores na imprensa, jogando
sujo como sempre.
Não cabe aqui sentenciar se a
moratória unilateral por ele
anunciada despoletou (como
se diz em Portugal) o furacão
que abalou nossa moeda. Importante registrar que o pai ou
avô do Real, querendo ou não,
deu-lhe um safanão quase fatal. O governador Olívio Dutra,
politicamente mais radical e
com uma imagem injusta de
bravateador, optou, no entanto, pelas regras do jogo: preferiu enfrentar o governo federal
apelando pela Justiça.
O confronto político não é
obrigatoriamente violento.
Ainda mais neste esmaecer da
Era das Ideologias, onde as divergências tendem a concentrar-se no modo de fazer. Nosso
tribalismo não precisa necessariamente encaminhar-se para
o canibalismo. A primorosa
pesquisa histórica de Lilia Moritz Schwarcz "As Barbas do
Imperador" (Cia. das Letras,
1998, 623 págs.), sobre a vida e
os tempos de d. Pedro 2º, reconstitui ao vivo, como se fosse
um filme, nossa única idade de
ouro, matriz da modernidade
brasileira. O imperador, no entanto, era chamado de "Pedro
Banana", e os mais ferrenhos
opositores devotavam-lhe respeito.
A ruidosa "rentrée" de Itamar lembrou-me logo a história de Sansão, um dos mitos
trágicos do Velho Testamento.
O nome vem de Sol, fonte da
descomunal força. Diz a lenda
que estraçalhou um leão com
as suas mãos e, por vingança,
matou mil filisteus com apenas
um osso de asno. Seu fraco, as
mulheres: a sedutora Dalila (de
"laila", noite) descobriu que o
fabuloso vigor provinha da
basta cabeleira e, depois de
uma noite de amor, cortou-lhe
as madeixas. Foi capturado pelos inimigos que o cegaram.
Mais tarde, por diversão, os
filisteus o trouxeram para uma
festa religiosa num de seus
templos. Cabelos já crescidos,
duplamente cego -sem olhos e
tomado pela raiva-, Sansão
derrubou as colunas do templo
matando os 3.000 presentes.
Morreu junto (Juízes, 13-16). O
gigante fascinou Milton, Rembrandt, Voltaire, Blake. Olhado de várias maneiras, inclusive como símbolo do poder insensato, ensandecido, raivoso.
E suicida.
No meu carnê de viagem pela
Europa, encontro anotações
curiosas. Para explicar seu fraco desempenho ao longo do
ano que findava, o tetra-campeão da Fórmula 1, Alain
Prost, filosofou como bom francês: "Le problème est la impatience" ("Le Figaro", 29/12/98,
p.13). O ás do volante percebeu
que a velocidade do bólido nada tem a ver com a sua velocidade interior. A impaciência e
seus subprodutos, inclusive a
raiva, é irmã do desespero, filhos da mesma incapacidade de
esperar. E operar com eficácia.
Um dia antes, uma das figuras
mais interessantes do catolicismo europeu, o humanista Jean-Marie Lustiger (nascido e criado como judeu, hoje cardeal-arcebispo de Paris), no mesmo clima de balanço anual, dizia:
"Para ter esperança não é preciso tomar tranquilizantes" (mesmo jornal, 1ª pág.). Lustiger não
queria incursionar pelo terreno
da psicoterapia ou da auto-ajuda. Embora situado no extremo
oposto das posições de Corção,
avalia as lições do abismo. Em
meio às angústias milenaristas
e apocalípticas que se estendem
das artes à economia, há uma
luz no fim do túnel. Para percebê-la, basta disposição.
Esta é a maravilhosa mensagem de "A Vida é Bela", de Roberto Benigni, autor, ator e diretor que foi buscar nas memórias do revolucionário Leon
Trótski o mote para um dos
mais extraordinários filmes sobre o Holocausto. Porque é uma
comédia que gira em torno de
um tenebroso episódio da história da humanidade, porque é
um hino à vida a partir da exposição da bestialidade nazista,
porque transcende à questão do
anti-semitismo e faz do amor
-todos os amores- saída para
enfrentar os malefícios.
Nosso "Central do Brasil" vai
enfrentá-lo na votação do Oscar. Ambos têm como pivô uma
criança, ambos giram em torno
do faz-de-conta, acreditam que
ilusão é um jogo que pode dar
certo. Há um sentido na vida,
desde que tenhamos a lucidez
para perceber o que faz sentido.
Pode-se ganhar, perdendo.
Mesmo à beira do precipício.
Porque ofusca e embaralha, a
ira, mesmo sagrada, pode ser
diabólica.
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