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CARLOS HEITOR CONY
Mais de mil palhaços no salão
"Quero beber , cantar
asneiras..." -isso foi dito por um rapaz que estava tuberculoso e era poeta, num dos Carnavais antigos, lá pelos anos 20.
Atualmente, são raros os tuberculosos e escassos os poetas no mercado. Além do mais, ninguém
precisa de datas específicas e patrocinadas pelas cervejas para
cantar asneiras: tem-se o ano todo para isso. O Carnaval é um
pleonasmo na vida do brasileiro.
A festa existe e resiste, incorporando elementos novos, absorvendo antíteses e promovendo
formidáveis sínteses. É mesmo como o Brasil: quanto mais se muda, mais continua a mesma coisa.
Existe um ditado francês que diz
a mesmíssima coisa.
Os jornais cassaram de sua enxuta linguagem a expressão tríduo momesco, que era do meu especial agrado. As autoridades,
tanto na órbita federal, estadual
ou municipal, agora aparecem
mais do que o rei Momo, entidade que antigamente transcendia
à alegoria e se tornava uma gorda
presença nos bailes, nas ruas, nos
préstitos. Hoje, é mais fácil a gente encontrar o prefeito, o governador ou o presidente da República
no desfile das escolas de samba do
que o suado e interino rei para o
qual ninguém dá bola.
Assim como a imprensa enxugou o texto, o próprio Carnaval
enxugou-se de seus excessos provincianos e grosseiros. Arquivaram-se as bolas de cheiro, as seringas e bacias de água, os trotes
truculentos. Contudo arquivou-se
também aquele gostoso mau gosto de antanho, trocando-se os
acordes da "Marcha Triunfal da
Aída", que era prefixo musical
dos fenianos, pela monotonia de
uma erudição imposta de cima
para baixo. Nos carros alegóricos
dos anos 30, não faltava a cabeça
decepada de João Batista sendo
beijada por uma Salomé, que fazia ponto na rua Conde Lage.
Não faltava a Cleópatra que se
entregava aos braços de um Marco Antônio, um sujeito taludo,
que na vida civil era segurança de
um bicheiro. E, sobretudo, não
podia faltar a bíblica cena do paraíso terrestre, Eva seminua tentando Adão com a maçã do tamanho de uma melancia. História e lenda sempre foram carnavalescas em si mesmas.
Um estúpido regulamento cassou esses e outros edificantes temas. Fica-se hoje no confuso ou
bestialógico samba-enredo que
bota na boca da plebe personagens, intrigas e conceitos que só
meia dúzia de entendidos compreende e aprecia.
A festa deixou de ser roceira,
tenta ser cosmopolita e, desde já, é
um parêntese não exatamente de
alegria e esbórnia, mas de ordem
social. Há coisa de 20 anos, zanzava pela pista dos desfiles a Régine, aquela das discotecas de Paris
e Nova York, com o colete da Riotur.
Aliás, é sempre com assombro
que tomo conhecimento da multidão de jornalistas credenciados
para os eventos. Passamos o ano
todo lamentando que o mercado
está em recesso, não há jornais
nem redações suficientes para
abrigar os rapazes que anualmente saem das faculdades de comunicação. No Carnaval, é mais
fácil saber quem não é jornalista,
pois a maioria o é. Ainda no quesito imprensa: quem ainda não
viu o repórter Tarlis Batista antes,
durante e depois do Carnaval,
praticamente ainda não viu nada
que preste neste mundo de Deus.
O que ele exibe de credenciais é
uma enciclopédia. Apesar de sólido, o corpo fica-lhe vergado ao
peso de tantas e tão variadas credenciais. Da pista do Sambódromo ele pode ir diretamente para o
Palácio de Buckingham, pode entrar nos aposentos pontifícios do
Vaticano, penetrar na sala Oval
da Casa Branca -suas credenciais são vastas, ecumênicas, totais, definitivas.
Mas nem só do Tarlis Batista e
das peruas que trafegam pelas
pistas dos principais eventos é feito o Carnaval carioca. Os travestis merecem ser vistos, discutidos
e apreciados. O travesti é um iceberg às avessas. Como todos sabemos, o iceberg mostra apenas um
terço de sua massa glacial, os dois
terços restantes ficam submersos.
O travesti seria um iceberg de cabeça para baixo: dois terços ficam
acima dele. São os penachos, as
alegorias, os esplendores, enfim, a
pompa e a glória que garantem
aos rapazes uma foto na imprensa ou um flash na TV.
Por falar em TV e imprensa, pode-se deduzir que a mídia está
forçando a barra. Pouco a pouco
a festa em si vai ficando em segundo plano, a pole position sendo ocupada pelo contorno, pelo
que deveria ser moldura. De tempos para cá, o mais importante
não acontece na pista, mas nos
camarotes. O ""affair" Itamar
Franco-Lilian Ramos tornou-se
um logotipo da festa, mais eficiente do que as baianas da Mangueira e a águia da Portela.
Bem, não deixa de ser curioso
que muita gente, quando se refere
à idade de uma pessoa, em vez de
dizer que fulano tem 50 anos de
vida, diz que tem 50 carnavais.
Não se diz 50 natais, nem 50 sábados de aleluia -que são festas
igualmente anuais. Ignoro o que
isso chega a significar -se é que
significa alguma coisa. De qualquer forma, coloca a grande festa
como um instante que pode marcar o tempo e definir o espaço que
todos nós, mil palhaços no meio
do salão, ocupamos num universo onde a aspiração dos poetas é
beber e cantar asneiras.
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