São Paulo, sexta-feira, 23 de fevereiro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Mais de mil palhaços no salão

"Quero beber , cantar asneiras..." -isso foi dito por um rapaz que estava tuberculoso e era poeta, num dos Carnavais antigos, lá pelos anos 20. Atualmente, são raros os tuberculosos e escassos os poetas no mercado. Além do mais, ninguém precisa de datas específicas e patrocinadas pelas cervejas para cantar asneiras: tem-se o ano todo para isso. O Carnaval é um pleonasmo na vida do brasileiro.
A festa existe e resiste, incorporando elementos novos, absorvendo antíteses e promovendo formidáveis sínteses. É mesmo como o Brasil: quanto mais se muda, mais continua a mesma coisa. Existe um ditado francês que diz a mesmíssima coisa.
Os jornais cassaram de sua enxuta linguagem a expressão tríduo momesco, que era do meu especial agrado. As autoridades, tanto na órbita federal, estadual ou municipal, agora aparecem mais do que o rei Momo, entidade que antigamente transcendia à alegoria e se tornava uma gorda presença nos bailes, nas ruas, nos préstitos. Hoje, é mais fácil a gente encontrar o prefeito, o governador ou o presidente da República no desfile das escolas de samba do que o suado e interino rei para o qual ninguém dá bola.
Assim como a imprensa enxugou o texto, o próprio Carnaval enxugou-se de seus excessos provincianos e grosseiros. Arquivaram-se as bolas de cheiro, as seringas e bacias de água, os trotes truculentos. Contudo arquivou-se também aquele gostoso mau gosto de antanho, trocando-se os acordes da "Marcha Triunfal da Aída", que era prefixo musical dos fenianos, pela monotonia de uma erudição imposta de cima para baixo. Nos carros alegóricos dos anos 30, não faltava a cabeça decepada de João Batista sendo beijada por uma Salomé, que fazia ponto na rua Conde Lage. Não faltava a Cleópatra que se entregava aos braços de um Marco Antônio, um sujeito taludo, que na vida civil era segurança de um bicheiro. E, sobretudo, não podia faltar a bíblica cena do paraíso terrestre, Eva seminua tentando Adão com a maçã do tamanho de uma melancia. História e lenda sempre foram carnavalescas em si mesmas.
Um estúpido regulamento cassou esses e outros edificantes temas. Fica-se hoje no confuso ou bestialógico samba-enredo que bota na boca da plebe personagens, intrigas e conceitos que só meia dúzia de entendidos compreende e aprecia.
A festa deixou de ser roceira, tenta ser cosmopolita e, desde já, é um parêntese não exatamente de alegria e esbórnia, mas de ordem social. Há coisa de 20 anos, zanzava pela pista dos desfiles a Régine, aquela das discotecas de Paris e Nova York, com o colete da Riotur.
Aliás, é sempre com assombro que tomo conhecimento da multidão de jornalistas credenciados para os eventos. Passamos o ano todo lamentando que o mercado está em recesso, não há jornais nem redações suficientes para abrigar os rapazes que anualmente saem das faculdades de comunicação. No Carnaval, é mais fácil saber quem não é jornalista, pois a maioria o é. Ainda no quesito imprensa: quem ainda não viu o repórter Tarlis Batista antes, durante e depois do Carnaval, praticamente ainda não viu nada que preste neste mundo de Deus. O que ele exibe de credenciais é uma enciclopédia. Apesar de sólido, o corpo fica-lhe vergado ao peso de tantas e tão variadas credenciais. Da pista do Sambódromo ele pode ir diretamente para o Palácio de Buckingham, pode entrar nos aposentos pontifícios do Vaticano, penetrar na sala Oval da Casa Branca -suas credenciais são vastas, ecumênicas, totais, definitivas.
Mas nem só do Tarlis Batista e das peruas que trafegam pelas pistas dos principais eventos é feito o Carnaval carioca. Os travestis merecem ser vistos, discutidos e apreciados. O travesti é um iceberg às avessas. Como todos sabemos, o iceberg mostra apenas um terço de sua massa glacial, os dois terços restantes ficam submersos. O travesti seria um iceberg de cabeça para baixo: dois terços ficam acima dele. São os penachos, as alegorias, os esplendores, enfim, a pompa e a glória que garantem aos rapazes uma foto na imprensa ou um flash na TV.
Por falar em TV e imprensa, pode-se deduzir que a mídia está forçando a barra. Pouco a pouco a festa em si vai ficando em segundo plano, a pole position sendo ocupada pelo contorno, pelo que deveria ser moldura. De tempos para cá, o mais importante não acontece na pista, mas nos camarotes. O ""affair" Itamar Franco-Lilian Ramos tornou-se um logotipo da festa, mais eficiente do que as baianas da Mangueira e a águia da Portela.
Bem, não deixa de ser curioso que muita gente, quando se refere à idade de uma pessoa, em vez de dizer que fulano tem 50 anos de vida, diz que tem 50 carnavais. Não se diz 50 natais, nem 50 sábados de aleluia -que são festas igualmente anuais. Ignoro o que isso chega a significar -se é que significa alguma coisa. De qualquer forma, coloca a grande festa como um instante que pode marcar o tempo e definir o espaço que todos nós, mil palhaços no meio do salão, ocupamos num universo onde a aspiração dos poetas é beber e cantar asneiras.


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