São Paulo, segunda, 23 de março de 1998

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ARTES PLÁSTICAS
Mostra vê o sonho de De Chirico

CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local

Há 110 anos de seu nascimento e 20 anos de sua morte, o pintor metafísico grego de origem italiana- Giorgio De Chirico (1888-1978) ganha sua maior retrospectiva já realizada no Brasil.
São 80 pinturas, 43 esculturas, 15 múltiplos e 40 jóias-esculturas em ouro, prata e bronze exibidas a partir de hoje no MuBE (Museu Brasileiro da Escultura).
Com um vocabulário de imagens que reúne estátuas e arquiteturas gregas clássicas, praças desabitadas, objetos do cotidiano, animais reais e mitológicos e seres sem rosto ou alma, De Chirico construiu uma obra complexa, um universo único e pessoal.
São espaços estéreis e desolados, povoados por uma atmosfera de sonhos e mistérios, onde toda convivência é enigmática, porém harmoniosa.
O teórico italiano de arte Achille Bonito Oliva, curador-convidado da mostra, acredita que a obra do pintor não se resume a esse seu legado metafísico, mas se manifesta ainda hoje, na obra dos artistas da transvanguarda.
O curador está no Brasil para a abertura da mostra e para divulgar a tradução brasileira de seu livro "A Arte até o Ano 2000" (112 páginas, R$ 35), em que detalha a trajetória da arte contemporânea a partir dos anos 60, se atendo principalmente à transvanguarda.
Segundo Bonito Oliva, esse movimento surgiu nos anos 70 como uma forma de superar o mito das vanguardas, entendidas como experimentação de novas técnicas e materiais, e promoveu a revalorização de técnicas tradicionais como pintura, escultura e desenho.
Em entrevista à Folha, Bonito Oliva falou também sobre as influências de De Chirico e sobre a relação conflituosa com seu irmão Savinio.

Folha - Como a cultura filosófica alemã caminha junto com a cultura clássica grega na obra de De Chirico?
Achille Bonito Oliva -
De Chirico vem da grande cultura alemã, de Nietzsche e de Kierkegaard, mas também está ligado ao mito da origem da cultura, à antiguidade clássica grega. Nos anos 10 e 20, a metafísica histórica se nutre do classicismo grego.
Nos anos 60 e 70, De Chirico viveu esse classicismo mais humanamente. Para ele, o classicismo se transforma em arqueologia e ganha uma idéia de tempo, que passa a atravessar toda essa pintura metafísica. De Chirico começa a perceber o classicismo em uma época globalizada, em que os mitos não podem mais sobreviver.
Folha - Apesar dessas suas raízes, De Chirico sempre negou suas influências...
Bonito Oliva -
De Chirico aplicou o ensaio de Freud sobre a denegação, que é uma forma de afirmar por meio da negação. Todos os artistas negam. Duchamp sempre negou ter visto os futuristas, mas depois realizou "Nu Descendo a Escada", que é quase uma cópia de um quadro de Balla.
A história da arte sempre foi uma história de canibalismo, sobre a forma como você come, digere e devolve ao mundo. O grande canibal foi Picasso, que comeu o passado, o presente e até o futuro. Ele antecipou tudo, mas se nutriu da história.
De Chirico se nutriu do classicismo e depois produziu uma obra original. Ele foi influenciado iconograficamente por Böcklin, esse grande pintor suíço, autor de grandes náiades e grandes ninfas.
Folha - De Chirico se contaminou com os avanços da psicanálise?
Bonito Oliva -
A pintura de De Chirico é a encenação de um sonho e, dessa forma, tem a ver com a psicanálise. É o sonho do classicismo, mas algo que o homem não pode mais viver. A metafísica é a reprodução de uma arquitetura evocativa de um classicismo que o homem não pode mais habitar.
Folha - Qual seria o papel de Carlo Carrà na pintura metafísica?
Bonito Oliva -
Os dois se encontraram em Ferrara, durante o serviço militar. Ferrara é uma cidade que tem uma estrutura arquitetônica tipicamente renascentista. É uma cidade metafísica. Carrà foi um homem muito culto, mas De Chirico teve uma grandeza maior e torna clássica a poética metafísica.
Carrà foi um artista importante, mas, na minha opinião, De Chirico deu o máximo de originalidade e classicismo à metafísica. Ele foi mais radical. Sua metafísica não remete simplesmente a Piero della Francesca e ao mito do "quattrocento", como aquela de Carrà. Remete à estatuária, à arquitetura e à escultura grega.
Folha - Por que ele sempre negou seus contemporâneos?
Bonito Oliva -
Isso é típico das vanguardas, negar qualquer inspiração ou solidariedade, negar a família. Esse é um comportamento edipiano das vanguardas: destruir os movimentos precedentes, destruir os companheiros de estrada, destruir a família.
Folha - A negação da família dele se manifestou na relação conflituosa com seu irmão Savinio?
Bonito Oliva -
Savinio sempre sofreu muito com isso. Quando ele encontrava De Chirico na rua, se afastava chorando. Falando a verdade, De Chirico foi um grande pintor, mas Savinio foi um grande artista, completo, que se aproximou da pós-modernidade. Savinio se ocupava de música, literatura, cinema, pintura. Seu talento pode ser medido em muitas linguagens.
Folha - De Chirico tinha ciúmes de Savinio?
Bonito Oliva -
Ciúmes acho que não, mas De Chirico tinha esse desejo de ser "pictor maximus". Ele não poderia fazer outra coisa que destruir sua família. Qualquer relação familiar era um forma de fragilidade, de fraqueza existencial.
De Chirico queria viver por meio de sua obra e não por meio de sua vida. Qualquer dependência em relação aos familiares era a admissão da existência de um grupo. Por isso nunca admitiu a metafísica como movimento ou a participação de Carrà.
Ele só pensava em pintar e em dar entrevistas paradoxais. Ele dizia que, no escuro, olhava para as próprias mãos e as via luminosas. Isso porque ele acreditava ser um alquimista, que transformava a matéria em forma, em ouro.
Folha - Como a obra de De Chirico permanece ainda hoje?
Bonito Oliva -
De Chirico é um dos pais involuntários da transvanguarda. Na produção pictórica de De Chirico nos anos 60 e 70, a metafísica se tornou citação, memória, ecletismo, reciclagem de linguagem, que são todas características comuns à transvanguarda. O grande De Chirico não foi apenas aquele dos anos 10 e 20, mas aquele de uma produção contínua, completa e articulada.
O modo como se analisa De Chirico é típico da cultura americana, que resume a história das vanguardas como um tipo de evolução darwinista da linguagem, em que o cubismo vai de 1907 a 1915, a metafísica vai de 1910 a 1920, o futurismo vai de 1909 a 1915.
Mas eu, como crítico europeu e teórico italiano, acredito que De Chirico não é apenas aquele que realiza quadros rigorosamente metafísicos, mas um produtor de imagens de uma metafísica madura nos anos 60 e 70. Isso permite que a transvanguarda trabalhe com citação, memória, ecletismo e contaminação.


Mostra: Giorgio De Chirico (pinturas, esculturas, múltiplos e jóias-esculturas) Onde: MuBE (Museu Brasileiro da Escultura: r. Alemanha, 221, esquina com av. Europa, tel. 011/881-8611) Vernissage: hoje, às 19h Quando: de terça a domingo, das 10h às 19h. Até 26 de abril Quanto: R$ 5 e R$ 3 (estudantes). Entrada franca às terças e para maiores de 65 anos e menores de 10 anos


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