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"Needles and Opium" traz a ambição heróica de Robert Lepage
NELSON DE SÁ
da Reportagem Local
O gênio de Quebec. O novo Peter
Brook. Quando Robert Lepage
surgiu no teatro internacional, no
centro do teatro no mundo, Londres, foi assim que o receberam,
no "Observer" e outros.
Foi há seis anos, mas a peça é a
mesma, "Needles and Opium",
agulhas e ópio, que deslumbrou o
fim-de-semana no festival de Curitiba, forçando apresentação extra. E que estará no Rio e em São
Paulo na próxima semana.
O que faz o teatro de Robert Lepage tão encantador, ele que escreveu e dirigiu (e interpretava,
nas primeiras apresentações), é
que abraça a técnica mais fria, material, desumana, e a humaniza.
Usa telão, fotografia, luzes, telefones, ventiladores, mas em seu
favor. Não é deslumbrado pela
máquina: trata-a com familiaridade, facilidade, sem medo.
Acredita que pode "inventar",
criar com ela -e não se deixar levar pelo império do "progresso",
que envolve o universo das máquinas. O problema hoje, diz Robert, seu alter-ego em "Needles
and Opium", é que "o progresso
substituiu a invenção". Ele, não:
inventa, "viaja" na máquina.
Peter Brook, o decano dos grandes diretores, escreveu dele:
"Robert Lepage se deu uma tarefa imensa e esplêndida... Um
teatro em que a realidade terrível e
incompreensível de nosso tempo é
ligada inseparavelmente aos detalhes insignificantes de nossas vidas. Para isso, experimenta com
uma linguagem onde a tecnologia
de hoje pode servir e sustentar a
humanidade de uma performance
ao vivo. Que ambição heróica!"
Já se passaram seis anos desde o
primeiro impacto, mas "Needles
and Opium" segue assombrosa,
em outra língua (espanhol), com
outro intérprete, nesta temporada
internacional que passa, finalmente, pelo Brasil.
O baque mais imediato é a integração tamanha entre palavra e
imagem -tão contrastante com a
ditadura da imagem de uma década atrás. À primeira vista, porém,
não é uma peça "fácil".
Três enredos se confundem: o de
Robert em 89, num quarto de hotel em Paris, com "dor de amor",
por perda e distância; o de Miles
Davis, músico americano, também em Paris, mas em 49; o de
Jean Cocteau, dramaturgo e poeta
francês, em Nova York, também
em 49. A uni-los, as agulhas (heroína) e o ópio -enfim, o vício.
A "dificuldade" vai além da
quebra da linearidade: "Needles
and Opium" se passa no alto, num
suposto avião, com Robert/Davis/Cocteau seguro por fios, mas
também no telão, com fotografias,
filmes velhos e novos, pinturas,
desenhos animados, e "até" no
palco. Ele fala ao telefone, fala ao
público, fala sozinho.
Uma imagem: Robert no avião,
duas hélices coladas nele, estrelas
no telão. Com um livro de Jean
Cocteau na mão. É "um céu noturno que se assemelha a uma zona de liberdade". É de lá que ele
sonha, "inventa" a peça.
Outra imagem: em teatro de
sombras, projetado no telão, prepara-se heroína com uma gilete,
depois a mistura com água, o fogo;
Robert, a sombra em tamanho natural, prende o sangue e aproxima
o braço da injeção gigantesca, o líquido se espalha, ele cai.
Do que fala "Needles and
Opium", afinal? Da "dor de
amor", da "angústia existencial" e
da "falta de segurança em si mesmo", como anuncia, desde logo.
Mas também de muito mais.
Idealizada no momento em que
caía o muro de Berlim, fala da falta
de paradigmas, de "grupo", "religião", o que for. Do "progresso"
e da falta de "invenção".
Do jornalismo, da mídia -e a
revolta do artista por ela rotulado
e transformado. Das drogas, pelo
bem ("nem os psiquiatras de Nova York darão a consciência que
dão as agulhas e o ópio") e pelo
mal, na prostração do artista.
Quando deixou de atuar em
"Needles and Opium", Lepage foi
ver uma apresentação preocupado. "Como é que as pessoas podem fazer todas essas conexões?
Elas realmente entendem alguma
coisa deste espetáculo?"
Elas entendem e se maravilham,
em Curitiba como em Londres ou
Montreal. Uma explicação é dada
pelo próprio Lepage, falando à Folha há seis anos: "A platéia lá fora
tem muitas referências, por causa
da TV, do cinema. Um vocabulário visual muito mais rico." Mas é
apenas parte da explicação.
Outra é que aponta, com sua liberdade formal, de criação, um
possível novo renascimento, no
dizer do próprio autor/diretor.
"Se você olhar o Renascimento
italiano, a força dele é quando tem
um encontro de artistas. E o teatro
é o local de encontro ideal."
"Needles and Opium" realiza o
encontro ideal das artes.
Excepcionalmente hoje, a coluna do jornalista
Fernando Gabeira não é publicada.
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