São Paulo, segunda, 23 de março de 1998

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"Needles and Opium" traz a ambição heróica de Robert Lepage

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

O gênio de Quebec. O novo Peter Brook. Quando Robert Lepage surgiu no teatro internacional, no centro do teatro no mundo, Londres, foi assim que o receberam, no "Observer" e outros.
Foi há seis anos, mas a peça é a mesma, "Needles and Opium", agulhas e ópio, que deslumbrou o fim-de-semana no festival de Curitiba, forçando apresentação extra. E que estará no Rio e em São Paulo na próxima semana.
O que faz o teatro de Robert Lepage tão encantador, ele que escreveu e dirigiu (e interpretava, nas primeiras apresentações), é que abraça a técnica mais fria, material, desumana, e a humaniza.
Usa telão, fotografia, luzes, telefones, ventiladores, mas em seu favor. Não é deslumbrado pela máquina: trata-a com familiaridade, facilidade, sem medo.
Acredita que pode "inventar", criar com ela -e não se deixar levar pelo império do "progresso", que envolve o universo das máquinas. O problema hoje, diz Robert, seu alter-ego em "Needles and Opium", é que "o progresso substituiu a invenção". Ele, não: inventa, "viaja" na máquina.
Peter Brook, o decano dos grandes diretores, escreveu dele:
"Robert Lepage se deu uma tarefa imensa e esplêndida... Um teatro em que a realidade terrível e incompreensível de nosso tempo é ligada inseparavelmente aos detalhes insignificantes de nossas vidas. Para isso, experimenta com uma linguagem onde a tecnologia de hoje pode servir e sustentar a humanidade de uma performance ao vivo. Que ambição heróica!"
Já se passaram seis anos desde o primeiro impacto, mas "Needles and Opium" segue assombrosa, em outra língua (espanhol), com outro intérprete, nesta temporada internacional que passa, finalmente, pelo Brasil.
O baque mais imediato é a integração tamanha entre palavra e imagem -tão contrastante com a ditadura da imagem de uma década atrás. À primeira vista, porém, não é uma peça "fácil".
Três enredos se confundem: o de Robert em 89, num quarto de hotel em Paris, com "dor de amor", por perda e distância; o de Miles Davis, músico americano, também em Paris, mas em 49; o de Jean Cocteau, dramaturgo e poeta francês, em Nova York, também em 49. A uni-los, as agulhas (heroína) e o ópio -enfim, o vício.
A "dificuldade" vai além da quebra da linearidade: "Needles and Opium" se passa no alto, num suposto avião, com Robert/Davis/Cocteau seguro por fios, mas também no telão, com fotografias, filmes velhos e novos, pinturas, desenhos animados, e "até" no palco. Ele fala ao telefone, fala ao público, fala sozinho.
Uma imagem: Robert no avião, duas hélices coladas nele, estrelas no telão. Com um livro de Jean Cocteau na mão. É "um céu noturno que se assemelha a uma zona de liberdade". É de lá que ele sonha, "inventa" a peça.
Outra imagem: em teatro de sombras, projetado no telão, prepara-se heroína com uma gilete, depois a mistura com água, o fogo; Robert, a sombra em tamanho natural, prende o sangue e aproxima o braço da injeção gigantesca, o líquido se espalha, ele cai.
Do que fala "Needles and Opium", afinal? Da "dor de amor", da "angústia existencial" e da "falta de segurança em si mesmo", como anuncia, desde logo. Mas também de muito mais.
Idealizada no momento em que caía o muro de Berlim, fala da falta de paradigmas, de "grupo", "religião", o que for. Do "progresso" e da falta de "invenção".
Do jornalismo, da mídia -e a revolta do artista por ela rotulado e transformado. Das drogas, pelo bem ("nem os psiquiatras de Nova York darão a consciência que dão as agulhas e o ópio") e pelo mal, na prostração do artista.
Quando deixou de atuar em "Needles and Opium", Lepage foi ver uma apresentação preocupado. "Como é que as pessoas podem fazer todas essas conexões? Elas realmente entendem alguma coisa deste espetáculo?"
Elas entendem e se maravilham, em Curitiba como em Londres ou Montreal. Uma explicação é dada pelo próprio Lepage, falando à Folha há seis anos: "A platéia lá fora tem muitas referências, por causa da TV, do cinema. Um vocabulário visual muito mais rico." Mas é apenas parte da explicação.
Outra é que aponta, com sua liberdade formal, de criação, um possível novo renascimento, no dizer do próprio autor/diretor. "Se você olhar o Renascimento italiano, a força dele é quando tem um encontro de artistas. E o teatro é o local de encontro ideal."
"Needles and Opium" realiza o encontro ideal das artes.


Excepcionalmente hoje, a coluna do jornalista Fernando Gabeira não é publicada.



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