São Paulo, terça, 23 de março de 1999
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CRÍTICA
Fringe revela o "inesperado"

NELSON DE SÁ
enviado especial a Curitiba

Diante de uma mostra oficial ainda disforme, buscando um novo perfil em meio a velhas vanguardas visuais e outros gêneros de arte cênica, da dança ao circo ao teatro infantil, o "inesperado" do teatro no festival deve ser buscado na mostra paralela, chamada Fringe.
O inusitado tão prometido na publicidade do festival (no slogan "o inesperado acontece aqui") foi encontrado pela primeira vez na peça "Eu Sou Mais Nelson", colagem da diretora Ana Kfouri para diálogos de Nelson Rodrigues.
A colagem é uma especialidade da diretora, que vem desenvolvendo no Rio como que um experimento dramatúrgico e cênico a partir de trechos de peças e outros textos. Neste caso, são as peças "Beijo no Asfalto", "Álbum de Família", "Toda Nudez Será Castigada", "Os Sete Gatinhos", entre outras.
O que se vê em cena é um Nelson Rodrigues bem diferente, não tão carregado de significados míticos, da linhagem inaugurada duas décadas atrás pelo encenador Antunes Filho, nem tão cômico, como visto em espetáculos de Marco Antônio Braz, Gabriel Villela e outros.
É uma dramaturgia de grande velocidade, ação frenética, desconhecida antes. Não há muito tempo para ecoar uma piada ou uma das frases feitas tão famosas do autor: a "urgência", na expressão da diretora, no programa da peça, é a marca dos textos selecionados. Salta-se sem respirar do marido desconfiado e patético de "A Mulher sem Pecado" para as tias feias, orgulhosamente avessas ao sexo, de "Dorotéia".
Em ritmo descontrolado, desaparece de vez a carga de culpa usualmente jogada sobre os personagens rodriguianos, que mais parecem estar brincando. É certo que a moralidade já é outra, a reação social é outra, hoje em dia, mas os personagens de "Eu Sou Mais Nelson" vão além e criam um cenário quase amoral.
Nelson Rodrigues nunca foi tão inocente, tão distante de tabus. É evidente que muito se deve à própria inocência e juventude do elenco, uma companhia criada no ano passado, de nome Alice 118. De tão jovens, devem ter mesmo dificuldade em compreender a maioria dos constrangimentos sexuais vividos 50 anos antes.
Por outro lado, daí resulta também uma certa sensação de superficialidade, em algumas passagens que chegam a ganhar ares de videoclipe. Mas é o preço a pagar, por arriscar um caminho "inesperado". É uma sensação que é compensada pela felicidade em torno da apresentação toda, nos rostos dos atores, fato raro no festival.
E são bons atores apesar da inexperiência, guiados com precisão por Ana Kfouri, que concentra muito de sua direção de interpretação nas ações físicas. Cenas inteiras lembram coreografias frenéticas, algumas vezes em aparente contraposição aos diálogos rodriguianos, mas sempre compondo um quadro de forte expressão.
Destaca-se, entre os atores, Bruno Ferreira como Noronha e como Tuninho, dois dos maiores personagens masculinos de Nelson Rodrigues. Com exposição menor, também impressiona Fabiano Fernandes, que interpreta d. Flávia. Entre as atrizes, Ana Abbott tem a figura mais marcante, como Silene e como Dália, mas também Luciana Ferreira deixa a sua marca, como Geni.


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