São Paulo, terça, 23 de março de 1999
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DISCO - LANÇAMENTOS
África


Antologia traz influências do Brasil no continente negro com registros de ritmos, como o samba, e cantos levados por ex-escravos brasileiros



OTÁVIO DIAS
da Reportagem Local

Pesquisador há mais de uma década dos ritmos praticados em rituais religiosos na Costa Oeste da África, Marcos Branda Lacerda, 44, lança seu segundo CD, dedicado à música influenciada por ex-escravos brasileiros que retornaram ao continente africano.
A antologia "Drama e Fetiche -Vodum, Bumba-Meu-Boi e Samba no Benin" traz gravações de manifestações rítmicas e vocais que o autor identifica como influências do samba e do bumba-meu-boi brasileiros.
O trabalho, editado pela Funarte (Fundação Nacional de Arte), teve origem numa viagem de cerca de dois meses que Lacerda realizou pelo Benin em 1987.
Então estudante da Universidade Livre de Berlim (Alemanha), Lacerda registrou cerca de 15 grupos de percussão que praticavam a música de culto iorubá.
A pesquisa teve especial interesse para o Brasil porque os iorubás, trazidos em grande número como escravos para a então colônia portuguesa, influenciaram a cultura e a religião brasileiras.
Do sincretismo entre a religião iorubá -conhecida como "tradição dos orixás"-e o catolicismo, nasceu o candomblé.
Como parte indissociável do culto, o som dos tambores também atravessou o oceano Atlântico e se tornou um dos componentes rítmicos da música brasileira.
Essa primeira parte da investigação resultou no CD "Tambores Iorubás do Benin, África Ocidental" (Yoruba Drums from Benin, West Africa), lançado em 96 pelo selo Smithsonian Folkways (Washington, EUA).
Durante a viagem, Lacerda conheceu também outras manifestações musicais, não diretamente associadas a cultos religiosos, nas quais identificou elementos de ritmos e cantos praticados no Brasil.
Isso se explicaria pelo retorno de escravos emancipados ou libertos do Brasil para a Costa Oeste africana, onde até hoje existem comunidades que se autodefinem como "brasileiras".
A escravidão foi abolida no Brasil em 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea, mas, nas décadas anteriores, surgiram leis de emancipação, como a Lei do Ventre Livre (1871).
Esse retorno foi descrito no livro "Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos", do antropólogo e fotógrafo Pierre Verger, nascido na França em 1902 e morto na Bahia em 1996.
Um grande número de brasileiros de origem africana retornou ao continente negro no final do século 19 não mais como escravos, mas como comerciantes de azeite-de-dendê, algodão e outros produtos.
Ao se estabelecerem em regiões hoje localizadas no Benin e na Nigéria, levaram consigo manifestações culturais brasileiras.
"Os escravos que regressaram ao Benin levaram um conjunto de hábitos e costumes e constituíram um grupo social destacado pela participação cultural no antigo continente", diz Lacerda.
A antologia busca registrar principalmente dois estilos musicais no Benin: o "burian" (deturpação da palavra burrinha, uma variação do bumba-meu-boi), e o "sélí" (ou "sákárà"), que teria similaridades com o samba.
"O burian tem elementos totalmente diversos da sensibilidade africana tradicional", diz Marco Lacerda, professor de etnomusicologia da Escola de Comunicações e Artes da USP (Universidade de São Paulo).
O bumba-meu-boi surgiu no final do século 18 no litoral do Nordeste brasileiro, onde era representado por escravos e trabalhadores de fazendas e engenhos de cana-de-açúcar.
As figuras da representação são personagens típicos da região agropastoril, sejam humanos (o vigário, o doutor, o cobrador), animais (o urubu, a ema) ou seres míticos (o caipora, o gigante).
A figura central é o do boi-dançador, que é morto por motivos variados e, em geral, ressuscita.
"No burian, a figura do boi também ocupa um lugar central na sucessão de máscaras que compõe a cerimônia", diz Lacerda. "O repertório musical não parece o do bumba-meu-boi, mas a mitologia e o ritual são parecidos."
Segundo o pesquisador, o canto traz "palavras claramente deturpadas do português mescladas a vocabulários antigos ou recentemente incorporados".
Também do ponto de vista rítmico, o burian se diferenciaria da música de percussão típica da África. "Na África, os tambores graves solam e os agudos são mais fixos. Essa hierarquia instrumental foi invertida", afirma.
"O grave fica como base e a variação é feita pelos tambores mais agudos. Tal variação parece vir de um processo de transformação da música africana no Brasil."
Os tambores utilizados não são apenas em formato de bojo tipicamente africanos, mas também outros que lembram tamborins (quadrados) de vários tamanhos.
Tambores similares aos tamborins também são utilizados no sélí ou sákárà, ritmo praticado por comunidades islâmicas no qual Lacerda vê influências do samba.
Também há instrumentos de madeira (conga) e de metal (jogo de agogô), estranhos à "austera" música iorubá.
De acordo com Lacerda, estudos mostram que, nas primeiras décadas do século 20, comunidades muçulmanas, então bastante dispersas, foram influenciadas pelo samba quando buscaram desenvolver uma cultura musical comum e própria.
"O samba, praticado pelas comunidades brasileiras naquela região da África, teria sido escolhido como elemento de integração musical e cultural entre as comunidades iorubás islamizadas", diz.
Novamente, a influência brasileira se verificaria em uma maior liberdade para os tambores agudos. O samba do Benin, no entanto, se diferenciaria do brasileiro pelo uso de "tambores falantes".
"O africano constrói instrumentos que possuem a capacidade de sugerir palavras. Ao combinarem toques graves, agudos ou médios, têm uma capacidade extraordinária de comunicar. Esses tambores não existem no Brasil", afirma.

Disco: Drama e Fetiche - Vodum, Bumba-Meu-Boi e Samba no Benin
Lançamento: Funarte
Onde encontrar: Musical Box (r. Armando Penteado, 1, Higienópolis, região central, tel. 011/825-6844)
Quanto: R$ 20



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