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DISCO - LANÇAMENTOS
África
Antologia traz influências do Brasil no continente negro com registros de ritmos, como o samba, e cantos levados por ex-escravos brasileiros
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OTÁVIO DIAS
da Reportagem Local
Pesquisador há mais de uma década dos ritmos praticados em rituais religiosos na Costa Oeste da
África, Marcos Branda Lacerda,
44, lança seu segundo CD, dedicado à música influenciada por ex-escravos brasileiros que retornaram ao continente africano.
A antologia "Drama e Fetiche
-Vodum, Bumba-Meu-Boi e Samba no Benin" traz gravações de manifestações rítmicas e vocais que o
autor identifica como influências
do samba e do bumba-meu-boi
brasileiros.
O trabalho, editado pela Funarte
(Fundação Nacional de Arte), teve
origem numa viagem de cerca de
dois meses que Lacerda realizou
pelo Benin em 1987.
Então estudante da Universidade
Livre de Berlim (Alemanha), Lacerda registrou cerca de 15 grupos
de percussão que praticavam a
música de culto iorubá.
A pesquisa teve especial interesse
para o Brasil porque os iorubás,
trazidos em grande número como
escravos para a então colônia portuguesa, influenciaram a cultura e
a religião brasileiras.
Do sincretismo entre a religião
iorubá -conhecida como "tradição dos orixás"-e o catolicismo,
nasceu o candomblé.
Como parte indissociável do culto, o som dos tambores também
atravessou o oceano Atlântico e se
tornou um dos componentes rítmicos da música brasileira.
Essa primeira parte da investigação resultou no CD "Tambores Iorubás do Benin, África Ocidental"
(Yoruba Drums from Benin, West
Africa), lançado em 96 pelo selo
Smithsonian Folkways (Washington, EUA).
Durante a viagem, Lacerda conheceu também outras manifestações musicais, não diretamente associadas a cultos religiosos, nas
quais identificou elementos de ritmos e cantos praticados no Brasil.
Isso se explicaria pelo retorno de
escravos emancipados ou libertos
do Brasil para a Costa Oeste africana, onde até hoje existem comunidades que se autodefinem como
"brasileiras".
A escravidão foi abolida no Brasil
em 13 de maio de 1888, com a Lei
Áurea, mas, nas décadas anteriores, surgiram leis de emancipação,
como a Lei do Ventre Livre (1871).
Esse retorno foi descrito no livro
"Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a
Bahia de Todos os Santos", do antropólogo e fotógrafo Pierre Verger, nascido na França em 1902 e
morto na Bahia em 1996.
Um grande número de brasileiros de origem africana retornou ao
continente negro no final do século 19 não mais como escravos, mas
como comerciantes de azeite-de-dendê, algodão e outros produtos.
Ao se estabelecerem em regiões
hoje localizadas no Benin e na Nigéria, levaram consigo manifestações culturais brasileiras.
"Os escravos que regressaram ao
Benin levaram um conjunto de hábitos e costumes e constituíram
um grupo social destacado pela
participação cultural no antigo
continente", diz Lacerda.
A antologia busca registrar principalmente dois estilos musicais
no Benin: o "burian" (deturpação
da palavra burrinha, uma variação
do bumba-meu-boi), e o "sélí" (ou
"sákárà"), que teria similaridades
com o samba.
"O burian tem elementos totalmente diversos da sensibilidade
africana tradicional", diz Marco
Lacerda, professor de etnomusicologia da Escola de Comunicações e
Artes da USP (Universidade de São
Paulo).
O bumba-meu-boi surgiu no final do século 18 no litoral do Nordeste brasileiro, onde era representado por escravos e trabalhadores de fazendas e engenhos de cana-de-açúcar.
As figuras da representação são
personagens típicos da região
agropastoril, sejam humanos (o vigário, o doutor, o cobrador), animais (o urubu, a ema) ou seres míticos (o caipora, o gigante).
A figura central é o do boi-dançador, que é morto por motivos variados e, em geral, ressuscita.
"No burian, a figura do boi também ocupa um lugar central na sucessão de máscaras que compõe a
cerimônia", diz Lacerda. "O repertório musical não parece o do
bumba-meu-boi, mas a mitologia
e o ritual são parecidos."
Segundo o pesquisador, o canto
traz "palavras claramente deturpadas do português mescladas a vocabulários antigos ou recentemente incorporados".
Também do ponto de vista rítmico, o burian se diferenciaria da
música de percussão típica da África. "Na África, os tambores graves
solam e os agudos são mais fixos.
Essa hierarquia instrumental foi
invertida", afirma.
"O grave fica como base e a variação é feita pelos tambores mais
agudos. Tal variação parece vir de
um processo de transformação da
música africana no Brasil."
Os tambores utilizados não são
apenas em formato de bojo tipicamente africanos, mas também outros que lembram tamborins (quadrados) de vários tamanhos.
Tambores similares aos tamborins também são utilizados no sélí
ou sákárà, ritmo praticado por comunidades islâmicas no qual Lacerda vê influências do samba.
Também há instrumentos de
madeira (conga) e de metal (jogo
de agogô), estranhos à "austera"
música iorubá.
De acordo com Lacerda, estudos
mostram que, nas primeiras décadas do século 20, comunidades
muçulmanas, então bastante dispersas, foram influenciadas pelo
samba quando buscaram desenvolver uma cultura musical comum e própria.
"O samba, praticado pelas comunidades brasileiras naquela região
da África, teria sido escolhido como elemento de integração musical e cultural entre as comunidades
iorubás islamizadas", diz.
Novamente, a influência brasileira se verificaria em uma maior liberdade para os tambores agudos.
O samba do Benin, no entanto, se
diferenciaria do brasileiro pelo uso
de "tambores falantes".
"O africano constrói instrumentos que possuem a capacidade de
sugerir palavras. Ao combinarem
toques graves, agudos ou médios,
têm uma capacidade extraordinária de comunicar. Esses tambores
não existem no Brasil", afirma.
Disco: Drama e Fetiche - Vodum, Bumba-Meu-Boi e Samba no Benin
Lançamento: Funarte
Onde encontrar: Musical Box (r. Armando
Penteado, 1, Higienópolis, região central,
tel. 011/825-6844)
Quanto: R$ 20
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