São Paulo, terça, 23 de março de 1999
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Mérito é apresentar diferenças lado a lado

LORENZO MAMMÌ
especial para a Folha

Em 1987, o etnomusicólogo Marcos Lacerda viajou ao Benin em busca, no universo da música iorubá, de material sobre as raízes do samba e do candomblé.
Encontrou um panorama bem mais complexo. Em relação à cultura afro-brasileira, o Benin não se coloca apenas como raiz, mas sim como pólo de um intercâmbio contínuo com o Brasil.
Esse vínculo foi estabelecido por africanos que vieram ao Brasil como escravos e que depois -eles mesmos ou seus descendentes- voltaram libertos para a África, mantendo fortes relações com o país da escravidão.
A música gerada por esses fluxos migratórios apresenta variações, dependendo do grau de integração dos recém-chegados com a população local.

Percussão "fon"
O CD "Drama e Fetiche - Vodum, Bumba-Meu-Boi e Samba no Benin" (editado pela Funarte) mostra três situações diferentes.
As primeiras faixas são dedicadas a exemplos de percussão "fon" (também nome de uma etnia da Costa Oeste africana), considerada como uma das tradições musicais mais sofisticadas e complexas de todo o continente.
Um tambor baixo, "falante", improvisa sobre uma base de ostinato superpostos, gerando deslocamentos contínuos de acento.
É música ligada aos cultos animistas, praticada pelos camponeses do interior, totalmente estranha à influência brasileira.
Segundo a tese de Lacerda, a percussão "fon" teve importante influência na formação da música praticada em rituais de candomblé, cuja origem é, em geral, atribuída principalmente ao povo iorubá.

Português afrancesado
A partir da faixa seis, o ritmo se simplifica para acompanhar uma melodia tonal, cantada num português deformado e afrancesado.
É a música do "burian", transposição local da burrinha baiana e do bumba-meu-boi pernambucano.
Finalmente, as últimas faixas são dedicadas à música islâmica do Benin, onde mais forte foi a integração entre elementos brasileiros e africanos.
Muitos escravos muçulmanos voltaram para a África depois de libertados, e suas relações com o Brasil foram em geral muito mais tênues do que as dos católicos.

Muçulmanos
Os muçulmanos brasileiros se fundiram, porém, com outros grupos de imigração islâmica, que chegavam do norte da África.
Daí uma cultura musical mista: a base, como aponta Lacerda, é certamente o samba, mas muitos jogos rítmicos e linhas vocais são claramente africanas.
É toda música muito gostosa de ouvir. Na percussão "fon" há uma elegância clássica, a plenitude de uma das linguagens rítmicas mais sofisticadas do mundo.

Diferenças
O "burian" possui uma graça frágil, nostálgica. É música de imigrados que se mantiveram numa comunidade relativamente isolada e coesa.
Já a música islâmica sugere a vitalidade de um processo de fusão ainda em aberto.
Um dos méritos do disco organizado por Lacerda está em apresentar músicas tão diferentes lado a lado. Como ocorre na realidade.


Lorenzo Mammì, 42, é professor de história da música na ECA (Escola de Comunicações e Artes) da Universidade de São Paulo.


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