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Mérito é apresentar diferenças lado a lado
LORENZO MAMMÌ
especial para a Folha
Em 1987, o etnomusicólogo Marcos Lacerda viajou ao Benin em
busca, no universo da música iorubá, de material sobre as raízes do
samba e do candomblé.
Encontrou um panorama bem
mais complexo. Em relação à cultura afro-brasileira, o Benin não se
coloca apenas como raiz, mas sim
como pólo de um intercâmbio
contínuo com o Brasil.
Esse vínculo foi estabelecido por
africanos que vieram ao Brasil como escravos e que depois -eles
mesmos ou seus descendentes-
voltaram libertos para a África,
mantendo fortes relações com o
país da escravidão.
A música gerada por esses fluxos
migratórios apresenta variações,
dependendo do grau de integração
dos recém-chegados com a população local.
Percussão "fon"
O CD "Drama e Fetiche - Vodum,
Bumba-Meu-Boi e Samba no Benin" (editado pela Funarte) mostra
três situações diferentes.
As primeiras faixas são dedicadas a exemplos de percussão "fon"
(também nome de uma etnia da
Costa Oeste africana), considerada
como uma das tradições musicais
mais sofisticadas e complexas de
todo o continente.
Um tambor baixo, "falante", improvisa sobre uma base de ostinato
superpostos, gerando deslocamentos contínuos de acento.
É música ligada aos cultos animistas, praticada pelos camponeses do interior, totalmente estranha à influência brasileira.
Segundo a tese de Lacerda, a percussão "fon" teve importante influência na formação da música
praticada em rituais de candomblé, cuja origem é, em geral, atribuída principalmente ao povo iorubá.
Português afrancesado
A partir da faixa seis, o ritmo se
simplifica para acompanhar uma
melodia tonal, cantada num português deformado e afrancesado.
É a música do "burian", transposição local da burrinha baiana e do
bumba-meu-boi pernambucano.
Finalmente, as últimas faixas são
dedicadas à música islâmica do Benin, onde mais forte foi a integração entre elementos brasileiros e
africanos.
Muitos escravos muçulmanos
voltaram para a África depois de libertados, e suas relações com o
Brasil foram em geral muito mais
tênues do que as dos católicos.
Muçulmanos
Os muçulmanos brasileiros se
fundiram, porém, com outros grupos de imigração islâmica, que
chegavam do norte da África.
Daí uma cultura musical mista: a
base, como aponta Lacerda, é certamente o samba, mas muitos jogos rítmicos e linhas vocais são claramente africanas.
É toda música muito gostosa de
ouvir. Na percussão "fon" há uma
elegância clássica, a plenitude de
uma das linguagens rítmicas mais
sofisticadas do mundo.
Diferenças
O "burian" possui uma graça frágil, nostálgica. É música de imigrados que se mantiveram numa comunidade relativamente isolada e
coesa.
Já a música islâmica sugere a vitalidade de um processo de fusão
ainda em aberto.
Um dos méritos do disco organizado por Lacerda está em apresentar músicas tão diferentes lado a lado. Como ocorre na realidade.
Lorenzo Mammì, 42, é professor de história da
música na ECA (Escola de Comunicações e Artes)
da Universidade de São Paulo.
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