São Paulo, segunda, 23 de junho de 1997.



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Ah! eu tô maluco, razão e felicidade no Brasil

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

O grito invadiu o espaço nacional. Crianças, adolescentes, torcedores, estrelas populares: ah! eu tô maluco.
No princípio pensou-se em droga, mas as reportagens esclareceram. Foi uma força mais essencial.
O grito veio de um funkeiro carioca vendo três dançarinas baianas num palco do Rio: ah! eu tô maluco.
Os funkeiros inventam gritos. Ouvem canções americanas, transformam os sons e dessa alquimia surge, por exemplo, uh tererê. São exercícios antropofágicos, delicada alquimia que transmuta a aspereza dos erros num redondo grito da terra, uh tererê.
De onde vem maluco, mal/uco? Em Machado de Assis, é clássica a história de um maluco que interna quem lhe parece maluco. Em Raul Seixas, maluco ganha uma nova qualificação: beleza. Quer dizer contemplativo, alto astral.
Mameluco
O dicionário não alcança a sedução da palavra maluco. Seus vizinhos também não a definem: mal de turco, maludo. A melhor dupla para maluco seria mameluco, esse sim um precursor sonoro.
Mamelucos eram filhos de europeus com índias. Andavam pelados, viviam na floresta, xingavam os jesuítas, zombavam dos santos.
Na sua extraordinária história da destruição da Mata Atlântica, Warren Dean reserva algumas linhas aos mamelucos, cujo nome talvez derive de membioca (casa da mãe).
Mameluco, segundo ele, pode parecer um termo insultuoso à primeira vista, mas encerrava um certo respeito pelo papel que aqueles intermediários entre nativos e europeus representavam na vida colonial.
Os jesuítas tentavam desclassificar as crenças dos mamelucos. Tornaram o espírito Currupira em um simples duende.
O problema é que os costumes nativos eram atraentes para alguns europeus, e a doutrina cristã, sentida por muitos como uma camisa de força, uma meia imposição do Estado. Para os austeros jesuítas, os mamelucos eram um pouco malucos, acreditavam num espírito com os pés voltados para trás, envolviam-se na fumaça do tabaco, enroscavam-se nas redes abraçados às suas fêmeas.
Se essas aproximações vernaculares fossem legítimas, poderíamos dizer "ah! estou mameluco" cada vez que escapássemos do rigor da racionalidade européia.
Os jovens funkeiros que inventam palavras ouvindo letras em inglês, mais modernos que nós, limitam-se a animar no sentido mais profundo uma língua pragmática, arrancando gritos tribais de prazer. Nesse sentido, os malucos funkeiros são descendentes dos mamelucos, só que vão direto ao idioma, revolucionando a pronúncia, criando sons que parecem brotar das entranhas da mata.
Talvez por isso, os publicitários associaram logo o uh tererê ao uh Guaraná, a bebida da terra.
Ao mastigarem as rascantes frases inglesas, os meninos do Rio, para mim, apenas continuam nossa tradição antropofágica, enfraquecida pelos portugueses.
A partir de certo momento, os tupis já não comiam mais ninguém não porque se tornaram católicos, mas porque os portugueses inflacionaram o preço dos escravos capturados nas lutas tribais.
Os meninos do Rio já não se abastecem mais da carne, mas do verbo. Na verdade, sequer se alimentam do verbo tão vital na dinâmica americana. Eles se alimentam de sons, saboreiam as palavras num contínuo da letra musical, separam algumas, cortam arestas, modelam contornos e, de repente, o grito de guerra sai do salão para as ruas, entra nas melhores famílias e acaba desaguando no Congresso, como o grito de uh tererê dos deputados governistas.
No momento em que cai na mesa dos ministros ou na reunião de publicitários, o grito se enfraquece. Mas nas madrugadas enfumaçadas do Rio, o ritual antropofágico continua, a renovação se garante.
Como se estivéssemos sempre disputando uma versão da gênese com os missionários portugueses. A nossa é assim: no princípio, alguém comeu alguém. Talvez isso nos faça um pouco mais materialistas, mas pode ser também, simplesmente, apenas um indício de que estou maluco. Ah...



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