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Ah! eu tô maluco, razão e felicidade no Brasil
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
O grito invadiu o espaço nacional. Crianças, adolescentes,
torcedores, estrelas populares:
ah! eu tô maluco.
No princípio pensou-se em
droga, mas as reportagens esclareceram. Foi uma força
mais essencial.
O grito veio de um funkeiro
carioca vendo três dançarinas
baianas num palco do Rio: ah!
eu tô maluco.
Os funkeiros inventam gritos.
Ouvem canções americanas,
transformam os sons e dessa
alquimia surge, por exemplo,
uh tererê. São exercícios antropofágicos, delicada alquimia
que transmuta a aspereza dos
erros num redondo grito da
terra, uh tererê.
De onde vem maluco, mal/uco? Em Machado de Assis, é
clássica a história de um maluco que interna quem lhe parece
maluco. Em Raul Seixas, maluco ganha uma nova qualificação: beleza. Quer dizer contemplativo, alto astral.
Mameluco
O dicionário não alcança a sedução da palavra maluco. Seus vizinhos também não a definem: mal
de turco, maludo. A melhor dupla
para maluco seria mameluco, esse
sim um precursor sonoro.
Mamelucos eram filhos de europeus com índias. Andavam pelados, viviam na floresta, xingavam
os jesuítas, zombavam dos santos.
Na sua extraordinária história da
destruição da Mata Atlântica,
Warren Dean reserva algumas linhas aos mamelucos, cujo nome
talvez derive de membioca (casa
da mãe).
Mameluco, segundo ele, pode
parecer um termo insultuoso à
primeira vista, mas encerrava um
certo respeito pelo papel que aqueles intermediários entre nativos e
europeus representavam na vida
colonial.
Os jesuítas tentavam desclassificar as crenças dos mamelucos.
Tornaram o espírito Currupira em
um simples duende.
O problema é que os costumes
nativos eram atraentes para alguns
europeus, e a doutrina cristã, sentida por muitos como uma camisa
de força, uma meia imposição do
Estado. Para os austeros jesuítas,
os mamelucos eram um pouco
malucos, acreditavam num espírito com os pés voltados para trás,
envolviam-se na fumaça do tabaco, enroscavam-se nas redes abraçados às suas fêmeas.
Se essas aproximações vernaculares fossem legítimas, poderíamos dizer "ah! estou mameluco"
cada vez que escapássemos do rigor da racionalidade européia.
Os jovens funkeiros que inventam palavras ouvindo letras em inglês, mais modernos que nós, limitam-se a animar no sentido mais
profundo uma língua pragmática,
arrancando gritos tribais de prazer. Nesse sentido, os malucos
funkeiros são descendentes dos
mamelucos, só que vão direto ao
idioma, revolucionando a pronúncia, criando sons que parecem
brotar das entranhas da mata.
Talvez por isso, os publicitários
associaram logo o uh tererê ao uh
Guaraná, a bebida da terra.
Ao mastigarem as rascantes frases inglesas, os meninos do Rio,
para mim, apenas continuam nossa tradição antropofágica, enfraquecida pelos portugueses.
A partir de certo momento, os
tupis já não comiam mais ninguém não porque se tornaram católicos, mas porque os portugueses inflacionaram o preço dos escravos capturados nas lutas tribais.
Os meninos do Rio já não se
abastecem mais da carne, mas do
verbo. Na verdade, sequer se alimentam do verbo tão vital na dinâmica americana. Eles se alimentam
de sons, saboreiam as palavras
num contínuo da letra musical, separam algumas, cortam arestas,
modelam contornos e, de repente,
o grito de guerra sai do salão para
as ruas, entra nas melhores famílias e acaba desaguando no Congresso, como o grito de uh tererê
dos deputados governistas.
No momento em que cai na mesa
dos ministros ou na reunião de publicitários, o grito se enfraquece.
Mas nas madrugadas enfumaçadas do Rio, o ritual antropofágico
continua, a renovação se garante.
Como se estivéssemos sempre
disputando uma versão da gênese
com os missionários portugueses.
A nossa é assim: no princípio, alguém comeu alguém. Talvez isso
nos faça um pouco mais materialistas, mas pode ser também, simplesmente, apenas um indício de
que estou maluco. Ah...
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