São Paulo, sexta-feira, 23 de junho de 2000


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GASTRONOMIA
A festa dos caipiras globalizados

HAMILTON MELLÃO JR.
COLUNISTA DA FOLHA

Estava me preparando para dar a primeira mordida no mais prosaico dos mistos-quentes quando toca o interfone. É o Carlos Adriano: "Vamos a uma festa junina?". Desço. Para quem ainda não o conhece, Carlos Adriano é o diretor "enfant-gâté" do cinema nacional.
Na medida do possível, acomodo minha carcaça gigante dentro do seu fusca e logo cruzamos o largo de Pinheiros. Lembramos então que, há 150 anos, ali ainda era um arraial para onde os romeiros vinham de longe, em lombo de burro ou cavalo, empenhados em assistir às missas de junho com os moradores da região.
No dia 13, a de santo Antônio de Pádua, um dos únicos santos de Portugal que, de tão querido e solicitado pelos brasileiros, acho que já se estabeleceu no espaço aéreo nacional. No dia 24, a de são João Batista, que batizou Cristo e foi por Ele definido como "o melhor entre os nascidos de mulher" e, no dia 29, uma consideração a são Pedro, primeiro papa e um dos primeiros mártires cristãos.
Depois das missas, satisfeita a fome espiritual, a outra fome era saciada nas barracas montadas à frente da igreja (com a renda revertida para os padres, é lógico).
Nelas, eram servidas as mesmas iguarias que se encontravam nas ruas paulistanas, num incipiente fast food da época: pinhão e batata-doce assados na brasa; canjica, pamonha e curau, aproveitando o final da colheita do milho. Para esquentar o peito e destravar a língua, pinga e quentão. E suco de cambuci ou um suave licor de pequi para as donzelas e senhoras.
Numa homenagem a são João, eram obrigatórios os bolos e tortas feitos com mel, já que o santo anacoreta alimentava-se quase que exclusivamente dele.
No centro do arraial, uma fogueira queimava, simbolizando -na exegese cristã- o suplício das vítimas de Nero no incêndio de Roma. Também soltavam-se muitos balões, que levavam pedidos e mensagens aos santos, numa espécie de chat da Internet celestial.
Para que ninguém se esquecesse, no meio daquela esbórnia, que a festa era santa, pontificavam no alto dos mastros as imagens dos três beatos, tomando conta das suas ovelhas lá embaixo, porque a quadrilha rolava solta.
Hoje existe um consenso entre os estudiosos dos costumes da cidade de São Paulo de que a quadrilha, que teve origem nos Países Baixos, foi introduzida por comerciantes franceses que aqui chegaram depois de 1750. Daí as expressões usadas (e depois tropicalizadas) para conduzir a dança: anavantur, anarriê, balancê, travessê, arretê e outras.
Já a encenação do casamento, ponto alto da festa, deve ter sido criada aqui mesmo, provavelmente por alguém que estivesse mais esquentado pelo quentão do que os outros.
É lógico que essa festa era repetida (como de alguma forma é até hoje) nas outras dioceses da cidade e de todo o Brasil, embora no Norte/Nordeste ela ainda tenha outra mística e maior riqueza folclórica.
A industrialização inexorável da nossa cidade nos deixou órfãos de identidade. O que chamamos de caipira éramos nós até há bem pouco tempo. Estigmatizou-se o matuto, como o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato (que depois reconheceu seu erro), ou o Mazzaropi, na caracterização do caipira ingênuo e indolente, tudo o que uma sociedade progressista abomina. Cornélio Pires, ao contrário, sentiu a riqueza desse folclore e dessa gente que foi expulsa ou se metamorfoseou na cidade para nunca mais voltar. Mas o descaso é tão grande que seus inúmeros livros não são achados nem nos sebos mais prolíficos.
Não temos mais falhas nos dentes graças aos aparelhos ortodônticos, calçamos sapatos, mas os descalçamos na primeira oportunidade, e não andamos remendados porque o tecido agora é barato, mas, no sentido em que a palavra é usada hoje, somos mais caipiras do que nunca, porque somos caipiras globalizados.
Ah, ia me esquecendo de falar da festa a que fui. Tinha bandeirinha, pizza, cachorro-quente, o bendito pagode, tudo horripilantemente feio. Comentei com um atarantado Carlos Adriano: "Isso dá filme...". E ele me disse: "Já deu". Sua face revelava uma cava depressão rodriguiana.
E-mail - mellao@uol.com.br


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