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GASTRONOMIA
A festa dos caipiras globalizados
HAMILTON MELLÃO JR.
COLUNISTA DA FOLHA
Estava me preparando para
dar a primeira mordida no
mais prosaico dos mistos-quentes
quando toca o interfone. É o Carlos Adriano: "Vamos a uma festa
junina?". Desço. Para quem ainda não o conhece, Carlos Adriano
é o diretor "enfant-gâté" do cinema nacional.
Na medida do possível, acomodo minha carcaça gigante dentro
do seu fusca e logo cruzamos o
largo de Pinheiros. Lembramos
então que, há 150 anos, ali ainda
era um arraial para onde os romeiros vinham de longe, em lombo de burro ou cavalo, empenhados em assistir às missas de junho
com os moradores da região.
No dia 13, a de santo Antônio de
Pádua, um dos únicos santos de
Portugal que, de tão querido e solicitado pelos brasileiros, acho
que já se estabeleceu no espaço
aéreo nacional. No dia 24, a de
são João Batista, que batizou
Cristo e foi por Ele definido como
"o melhor entre os nascidos de
mulher" e, no dia 29, uma consideração a são Pedro, primeiro papa e um dos primeiros mártires
cristãos.
Depois das missas, satisfeita a
fome espiritual, a outra fome era
saciada nas barracas montadas à
frente da igreja (com a renda revertida para os padres, é lógico).
Nelas, eram servidas as mesmas
iguarias que se encontravam nas
ruas paulistanas, num incipiente
fast food da época: pinhão e batata-doce assados na brasa; canjica,
pamonha e curau, aproveitando
o final da colheita do milho. Para
esquentar o peito e destravar a
língua, pinga e quentão. E suco de
cambuci ou um suave licor de pequi para as donzelas e senhoras.
Numa homenagem a são João,
eram obrigatórios os bolos e tortas feitos com mel, já que o santo
anacoreta alimentava-se quase
que exclusivamente dele.
No centro do arraial, uma fogueira queimava, simbolizando
-na exegese cristã- o suplício
das vítimas de Nero no incêndio
de Roma. Também soltavam-se
muitos balões, que levavam pedidos e mensagens aos santos, numa espécie de chat da Internet celestial.
Para que ninguém se esquecesse, no meio daquela esbórnia, que
a festa era santa, pontificavam no
alto dos mastros as imagens dos
três beatos, tomando conta das
suas ovelhas lá embaixo, porque a
quadrilha rolava solta.
Hoje existe um consenso entre
os estudiosos dos costumes da cidade de São Paulo de que a quadrilha, que teve origem nos Países
Baixos, foi introduzida por comerciantes franceses que aqui
chegaram depois de 1750. Daí as
expressões usadas (e depois tropicalizadas) para conduzir a dança: anavantur, anarriê, balancê,
travessê, arretê e outras.
Já a encenação do casamento,
ponto alto da festa, deve ter sido
criada aqui mesmo, provavelmente por alguém que estivesse
mais esquentado pelo quentão do
que os outros.
É lógico que essa festa era repetida (como de alguma forma é até
hoje) nas outras dioceses da cidade e de todo o Brasil, embora no
Norte/Nordeste ela ainda tenha
outra mística e maior riqueza folclórica.
A industrialização inexorável
da nossa cidade nos deixou órfãos
de identidade. O que chamamos
de caipira éramos nós até há bem
pouco tempo. Estigmatizou-se o
matuto, como o Jeca Tatu, de
Monteiro Lobato (que depois reconheceu seu erro), ou o Mazzaropi, na caracterização do caipira
ingênuo e indolente, tudo o que
uma sociedade progressista abomina. Cornélio Pires, ao contrário, sentiu a riqueza desse folclore
e dessa gente que foi expulsa ou se
metamorfoseou na cidade para
nunca mais voltar. Mas o descaso
é tão grande que seus inúmeros livros não são achados nem nos sebos mais prolíficos.
Não temos mais falhas nos dentes graças aos aparelhos ortodônticos, calçamos sapatos, mas os
descalçamos na primeira oportunidade, e não andamos remendados porque o tecido agora é barato, mas, no sentido em que a palavra é usada hoje, somos mais caipiras do que nunca, porque somos
caipiras globalizados.
Ah, ia me esquecendo de falar
da festa a que fui. Tinha bandeirinha, pizza, cachorro-quente, o
bendito pagode, tudo horripilantemente feio. Comentei com um
atarantado Carlos Adriano: "Isso
dá filme...". E ele me disse: "Já
deu". Sua face revelava uma cava
depressão rodriguiana.
E-mail - mellao@uol.com.br
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