São Paulo, Sábado, 23 de Outubro de 1999
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LIVROS - LANÇAMENTOS
A capacidade de causar cócegas intelectuais

BIA ABRAMO
especial para a Folha

Há várias maneiras de ler "Idoru". A primeira delas é como um bem construído thriller de ficção científica. Se é que ainda dá para classificar assim o que William Gibson faz.
Para efeitos de sinopse, o que se passa em "Idoru" é basicamente o seguinte: o astro pop da banda Lo/Rez, o cantor Rez, anuncia que vai se casar com a "Idoru" japonesa Rei Toei. O termo vem de "idol" (ídolo, em inglês) e designa as estrelas de música pop pré-fabricadas - e, neste caso, fabricadas tem um significado sinistro. Chia, uma garota norte-americana do fã-clube do vocalista, desconfia do boato e vai para Tóquio investigar. No caminho, envolve-se involuntariamente com contrabando de nanotecnologia. Ao mesmo tempo, Colin Laney, o equivalente futurista de um atual surfista da Internet, algo como um espião "hi-tech", testemunha o suicídio (ou assassinato) de uma celebridade e vai trabalhar como um espécie de segurança cibernético da mesma banda.
Parece meio confuso e é um pouco, como acontece com os bons thrillers. É essa essencialmente a graça do gênero e Gibson tem pulso para desenvolvê-lo, com partes bem calculadas de mistério e revelações em velocidade e ritmos certos. Some-se a isso descrições vivazes e diálogos espertos e já se tem razões suficientes para colocar "Idoru" no ranking dos melhores livros de aventura dos últimos tempos.
Há, entretanto, um outro interesse em Gibson. Ao lado de Brucer Sterling, ele foi um dos fundadores do cyberpunk lá pelo início dos anos 80. Por tratar de certa forma do futuro e antecipar nesse futuro alguns dos avanços técnicos/científicos que se anunciavam, a literatura cyberpunk pertence, grosso modo, ao campo da ficção científica. Pense na atmosfera de "Blade Runner" e você terá uma razoável idéia da visão de futuro cyberpunk: tecnologia no cotidiano de todos, o poder fragmentado em corporações gigantescas, mídia onipresente, realidade virtual, Estado ausente, gangues urbanas... "Neuromancer" (Gibson, 1982) e "Piratas de Dados" (Sterling, 1983) foram os únicos livros dessa primeira fase que tiveram traduções brasileiras, lançadas pela finada coleção Zenith da editora Aleph.
O cyberpunk não apenas estava oferecendo uma previsão razoavelmente acurada do que seriam os anos 90 como também adiantava a junção até então improvável da tecnologia com a cultura pop, expressa nos termos que compuseram o próprio rótulo (cyber, de cibernética, mais punk). Nesse sentido, pode-se falar que o que Gibson e Sterling criaram foi uma espécie de ficção antecipatória mais sócio-cultural do que científica.
Essa literatura foi tremendamente influente no cinema -veja-se o sucesso de "Matrix", termo inclusive tirado de "Neuromancer"-, e seus escritores tornaram-se uma espécie de patronos da "revolução digital" puxada pela revista "Wired" (da qual foram inclusive colaboradores antes que virasse o boletim oficial e careta da América corporativa). O bacana é que, depois de uma escorregadela cafona para a ficção científica retrô em "A Different Engine", Gibson voltou em "Idoru", lançado nos EUA em 1996, a fazer aquilo que realmente sabe: olhar o presente com perplexidade.
Em "Idoru", o futuro constitui-se do "aqui-e-agora" ampliado pela imaginação, por um pessimismo cínico e um humor cerebral. Grosso modo, novamente, pode-se dizer que é uma escrita pós-moderna que não se leva a sério, cuja colcha de retalhos de referências e colagens tem a tripla função de parodiar o passado, rir do presente e ironizar o futuro.
Como uma espécie de Thomas Pynchon da esfera do entretenimento, Gibson povoa seu universo de personagens e acontecimentos que relacionam dados da cultura pop contemporânea (que agora inclui obrigatoriamente a tecnologia) de maneira divertida e, ainda assim ou talvez exatamente por causa disso, com a capacidade de causar ao menos umas tantas cócegas intelectuais.


Avaliação:    

Livro: Idoru Autor: William Gibson Tradução: Leila de Souza Mendes Editora: Conrad Quanto: R$ 25 (248 págs.)

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