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A RESENHA DA SEMANA
A ironia suicida
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Embora ajude na difícil divulgação da poesia, o frenesi
em torno da vida íntima dos
poetas costuma empurrar a
obra para segundo plano, deturpando seu sentido em nome
de um sensacionalismo de mídia.
O casamento de Ted Hughes
e Sylvia Plath, por exemplo,
acabou ganhando uma dimensão mítica cujos precedentes só
podem ser encontrados em relações amorosas tão célebres
quanto as de Shelley e Mary
Godwin (autora do "Frankenstein") ou Rimbaud e Verlaine.
Hughes, um dos expoentes
da poesia britânica deste século, nasceu em 1930 e morreu
em 98, de câncer, pouco depois
de publicar "Cartas de Aniversário", em que conta, em 88
poemas escritos ao longo de 25
anos, sua vida com a poeta
americana Sylvia Plath (1932-1963).
Os dois se conheceram em
Cambridge e se casaram em 56.
De tendência depressiva (sua
primeira tentativa de suicídio,
em 53, serve de experiência ao
romance "A Redoma de Vidro", publicado sob pseudônimo dez anos depois), Plath se
matou ao ser abandonada pelo
marido, abrindo o gás da cozinha após ter posto os dois filhos para dormir a salvo no
quarto de cima.
Desde então, Hughes passou
a ser alvo dos mais veementes
ataques feministas, ainda mais
quando, para completar, a mulher com quem passou a viver
ao se separar de Plath matou a
filha e se suicidou em seguida.
Os ataques e insinuações, a
julgar por um dos recentes lançamentos do mercado literário
inglês, "Burnt Diaries" ("Diários Queimados"), de Emma
Tennant, prosseguem por um
efeito oportunista, apostando
no interesse de público e mídia
pela vida privada do poeta.
Editora e figura-chave da cena literária londrina nos anos
70, Tennant revela, entre outras coisas, detalhes íntimos de
seu caso amoroso com o poeta,
e o próprio título de seu volume de memórias pode ser lido
como uma vingança irônica ao
fato de Hughes ter admitido
que rasgara um diário de Plath.
É como se, após a morte de
Hughes e a publicação do surpreendente best seller "Cartas
de Aniversário" (a comovente
versão do poeta para sua experiência amorosa com Plath, e
também sua resposta aos ataques feministas), Tennant assumisse o papel de paladina
das mulheres feridas e, em nome de Sylvia Plath, que não está
viva para responder às "cartas"
do ex-marido, viesse à público
para revelar novos podres da
vida íntima do poeta.
Toda a beleza de "Cartas de
Aniversário", publicado numa
excelente edição bilíngue pela
Record, está precisamente nessa impossibilidade. O livro é a
tentativa de uma comunicação
solitária e por isso mesmo impossível. É, como toda grande
arte, uma tentativa inconformada de superar o impossível.
Os poemas são "cartas" à
mulher morta. São respostas
diferidas a situações, sentimentos e mesmo a palavras do diário de Plath que Hughes lê sozinho dez anos depois da morte
da autora. São poemas que tentam dizer o que não foi dito ou
compreendido na hora. São
menos um resultado passivo e
melancólico da perda e da simples recordação do que um esforço de, lembrando, fazer reviver pelo poema.
Já em "A Redoma de Vidro"
o que está em jogo é um outro
tipo de reação (ao papel a que
as mulheres estão submetidas):
um niilismo profundo sob o
sarcasmo de uma voz que oscila entre laivos de inteligência e
as tolices de uma menininha.
Sylvia Plath conta a história
de uma moça sensível e depressiva, cuja resignação ao horror
que a rodeia (e, ao mesmo tempo, sua inadaptação ao mundo
dos homens e à procriação, que
ela vê como um martírio da
mulher) produz uma auto-ironia que é a sua única resistência
e forma de combate, sua única
opção antes da tentativa de suicídio. O mundo a obriga a uma
auto-ironia que ela transforma
em reação como forma precária de sobrevivência.
A condição dessa prosa e dessa narradora é ser exterior a si
mesma, ver-se como uma outra para poder transformar o
sofrimento em ironia. E o suicídio surge sob uma forma sarcástica, embora também aterradoramente premonitória do
destino da própria autora.
Nessa ambiguidade e duplicidade (a "redoma de vidro" é o
que faz dela um duplo, o que a
permite observar-se fora de si),
todo o romance passa a ser
uma descrição de um processo
de loucura em que o mais terrível é não se entender bem o
momento em que a ironia dá
lugar ao real e passa a ser suicida.
Avaliação:
Livro: Cartas de Aniversário
Autor: Ted Hughes
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Record
Quanto: R$ 36 (399 págs.)
Avaliação:
Livro: A Redoma de Vidro
Autora: Sylvia Plath
Tradução: Beatriz Horta
Editora: Record
Quanto: R$ 28 (268 págs.)
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