São Paulo, Sábado, 23 de Outubro de 1999
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A RESENHA DA SEMANA
A ironia suicida

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Embora ajude na difícil divulgação da poesia, o frenesi em torno da vida íntima dos poetas costuma empurrar a obra para segundo plano, deturpando seu sentido em nome de um sensacionalismo de mídia.
O casamento de Ted Hughes e Sylvia Plath, por exemplo, acabou ganhando uma dimensão mítica cujos precedentes só podem ser encontrados em relações amorosas tão célebres quanto as de Shelley e Mary Godwin (autora do "Frankenstein") ou Rimbaud e Verlaine.
Hughes, um dos expoentes da poesia britânica deste século, nasceu em 1930 e morreu em 98, de câncer, pouco depois de publicar "Cartas de Aniversário", em que conta, em 88 poemas escritos ao longo de 25 anos, sua vida com a poeta americana Sylvia Plath (1932-1963).
Os dois se conheceram em Cambridge e se casaram em 56. De tendência depressiva (sua primeira tentativa de suicídio, em 53, serve de experiência ao romance "A Redoma de Vidro", publicado sob pseudônimo dez anos depois), Plath se matou ao ser abandonada pelo marido, abrindo o gás da cozinha após ter posto os dois filhos para dormir a salvo no quarto de cima.
Desde então, Hughes passou a ser alvo dos mais veementes ataques feministas, ainda mais quando, para completar, a mulher com quem passou a viver ao se separar de Plath matou a filha e se suicidou em seguida.
Os ataques e insinuações, a julgar por um dos recentes lançamentos do mercado literário inglês, "Burnt Diaries" ("Diários Queimados"), de Emma Tennant, prosseguem por um efeito oportunista, apostando no interesse de público e mídia pela vida privada do poeta.
Editora e figura-chave da cena literária londrina nos anos 70, Tennant revela, entre outras coisas, detalhes íntimos de seu caso amoroso com o poeta, e o próprio título de seu volume de memórias pode ser lido como uma vingança irônica ao fato de Hughes ter admitido que rasgara um diário de Plath.
É como se, após a morte de Hughes e a publicação do surpreendente best seller "Cartas de Aniversário" (a comovente versão do poeta para sua experiência amorosa com Plath, e também sua resposta aos ataques feministas), Tennant assumisse o papel de paladina das mulheres feridas e, em nome de Sylvia Plath, que não está viva para responder às "cartas" do ex-marido, viesse à público para revelar novos podres da vida íntima do poeta.
Toda a beleza de "Cartas de Aniversário", publicado numa excelente edição bilíngue pela Record, está precisamente nessa impossibilidade. O livro é a tentativa de uma comunicação solitária e por isso mesmo impossível. É, como toda grande arte, uma tentativa inconformada de superar o impossível.
Os poemas são "cartas" à mulher morta. São respostas diferidas a situações, sentimentos e mesmo a palavras do diário de Plath que Hughes lê sozinho dez anos depois da morte da autora. São poemas que tentam dizer o que não foi dito ou compreendido na hora. São menos um resultado passivo e melancólico da perda e da simples recordação do que um esforço de, lembrando, fazer reviver pelo poema.
Já em "A Redoma de Vidro" o que está em jogo é um outro tipo de reação (ao papel a que as mulheres estão submetidas): um niilismo profundo sob o sarcasmo de uma voz que oscila entre laivos de inteligência e as tolices de uma menininha.
Sylvia Plath conta a história de uma moça sensível e depressiva, cuja resignação ao horror que a rodeia (e, ao mesmo tempo, sua inadaptação ao mundo dos homens e à procriação, que ela vê como um martírio da mulher) produz uma auto-ironia que é a sua única resistência e forma de combate, sua única opção antes da tentativa de suicídio. O mundo a obriga a uma auto-ironia que ela transforma em reação como forma precária de sobrevivência.
A condição dessa prosa e dessa narradora é ser exterior a si mesma, ver-se como uma outra para poder transformar o sofrimento em ironia. E o suicídio surge sob uma forma sarcástica, embora também aterradoramente premonitória do destino da própria autora.
Nessa ambiguidade e duplicidade (a "redoma de vidro" é o que faz dela um duplo, o que a permite observar-se fora de si), todo o romance passa a ser uma descrição de um processo de loucura em que o mais terrível é não se entender bem o momento em que a ironia dá lugar ao real e passa a ser suicida.


Avaliação:     


Livro: Cartas de Aniversário
Autor: Ted Hughes
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Record
Quanto: R$ 36 (399 págs.)


Avaliação:    


Livro: A Redoma de Vidro
Autora: Sylvia Plath
Tradução: Beatriz Horta
Editora: Record
Quanto: R$ 28 (268 págs.)


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