São Paulo, terça-feira, 23 de outubro de 2001

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EXPOSIÇÃO

Arte egípcia revela sua cultura da imagem

HÉLIO SCHWARTSMAN
EDITORIALISTA DA FOLHA

É bacaninha a exposição "Egito Faraônico - Terra dos Deuses", que está no Masp. Na mostra principal, são 89 peças do Museu do Louvre que procuram traçar um painel da religiosidade egípcia de 2700 a.C. até a época ptolomaica.
A coleção, embora modesta, não é desprezível. O destaque fica para a sepultura de Sutymés, com esquifes ricamente decorados que se encaixam como bonecas russas. A múmia, infelizmente, não pôde vir.
O leitor deve ter notado que usei o pouco entusiasmado diminutivo "bacaninha" para qualificar "Egito Faraônico". Fi-lo porque nenhum dos grandes tesouros arqueológicos em poder do Louvre veio a São Paulo. O museu francês tem 60 mil peças. Mandou 89, nenhuma de valor inestimável.
Mesmo assim, o paulistano enfrenta filas para assistir à exibição, assim como esperou horas para ver uma outra mostra, "A Arte no Egito no Tempo dos Faraós", na Faap, no primeiro semestre.
Isso nos remete a um mistério: por que a civilização egípcia é tão popular? Uma exposição dedicada aos tabletes ugaríticos -fundamentais para a civilização como a conhecemos- provavelmente ficaria às moscas, enquanto qualquer coisa que diga respeito ao Antigo Egito atrai multidões -e em qualquer parte do mundo.
Hollywood deu uma mãozinha. Há dezenas de filmes sobre múmias, pirâmides, Cleópatra. Até os crocodilos do Nilo se tornam astros. Mas há outros povos que também possuem símbolos, cultura e mitologia fortes e que não mereceram nem uma fração da atenção de Hollywood.
O que torna a civilização egípcia tão especial? Desconfio de que o Antigo Egito, como Hollywood, é uma cultura da imagem. Da mesma forma que um filme americano pode ser visto -e compreendido- por qualquer terrestre, também a arte egípcia fala diretamente aos olhos.
A melhor pista que vi para explicar esse fenômeno é a esboçada por Elisabeth Delange, conservadora-chefe do departamento de antiguidades egípcias do Louvre: "Além disso, a língua egípcia não conhecia a abstração. (...) Como a escrita hieroglífica, calcada no ambiente do egípcio e em seu quadro natural, o pensamento religioso se exprimia por imagens".
Vale a pena debruçar um pouco sobre o caráter imagético da escrita egípcia, que surge por volta de 3100 a.C.. Ela parte de uma representação ideográfica, isto é, o hieróglifo correspondente a um touro significa mesmo "touro". De modo um pouco mais sofisticado, o desenho de uma orelha de vaca significa ouvir.
Também entram trocadilhos infames. O desenho de um rei, seguido do de uma casa e do de uma rainha significaria "o rei (se) casa (com) a rainha".
O que parece uma piada boba é a origem de um dos maiores saltos da humanidade. Numa radicalização posterior desses trocadilhos, os ideogramas darão lugar a sons da língua, gerando o alfabeto, que permitirá o registro duradouro de tudo o que possa ser dito com palavras.
Os egípcios tiveram a chave para o alfabeto em suas mãos, mas não o desenvolveram, optando por conservar um sistema híbrido altamente complexo, em que os níveis ideográfico e fonético se confundem.
O alfabeto mesmo, em que as letras correspondem apenas a sons, surgiu no segundo milênio antes de Cristo, desenvolvido aparentemente pelos fenícios. Os egípcios, por alguma razão, recusaram-se a dar esse último passo rumo à abstração alfabética. Influíram complexas questões sociais.
Os escribas, por exemplo, para conservar seu grande poder, se opuseram às tentativas de popularização da escrita. Mas, por uma questão de justiça poética, prefiro acreditar que os faraós sacrificaram a filosofia para permanecer fiéis à imagem. As filas para ver a exposição provam que estavam certos.


Egito Faraônico - Terra dos Deuses
   
Onde: Masp - 2º subsolo (av. Paulista, 1.578, São Paulo, tel. 0/xx/11/251-5644)
Quando: de ter. a sex., das 11h às 17h; sáb. e dom., das 11h às 18h; até 16/12
Quanto: R$ 10
Patrocinadores: Bradesco Seguros, Votorantim e Pão de Açúcar
Co-patrocinador: Folha




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