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"RECIFE/SEVILHA"
Lado espanhol de João Cabral ganha projeção
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Existe um rio que nasce em
Recife para só abrir em delta
lá no sudoeste da Espanha. Esse
rio, de mais cascalhos que águas
caudalosas, se chama João Cabral
de Melo Neto, e seu curso sem sinuosidades, reto, toma hoje uma
tela da 27ª Mostra de São Paulo.
"Recife/Sevilha", documentário
sobre o poeta pernambucano de
"O Cão sem Plumas", faz a navegação entre o Capibaribe pernambucano e o Bétis, que corta a
cidade andaluza, sem solavancos.
O porto de chegada, Sevilha, é o
ponto de partida do filme dirigido
por Bebeto Abrantes, produtor do
antológico "Três Antonios e Um
Jobim" -com os "antonios" Callado, Houaiss, Candido e Jobim.
Sevilha não foi pouco para João
Cabral (1920-99), diplomata em
dez cidades mundo afora. Seu
poema "Auto-Crítica" dá a medida: "Só duas coisas conseguiram/
(des)feri-lo até a poesia:/o Pernambuco de onde veio/ e o aonde
foi, a Andaluzia./Um, o vacinou
do falar rico/e deu-lhe a outra fêmea e viva,/desafio demente: em
verso/ dar a ver Sertão e Sevilha".
Foram dois períodos breves na
terra do flamenco, de 1956 a 1958 e
de 1962 a 1964, mas bastaram para
que lá Cabral tivesse um de seus
mais férteis periodos criativos.
O documentário de 52 minutos
recupera as lembranças desse
momento de forma privilegiada.
É o próprio Cabral quem narra,
em parte do filme, os bares que
gostava de frequentar, seu amor
pelas andanças pela cidade, sua
relação de amor com o flamenco.
"Tenho tendência para a sonolência. A música me faz dormir. O
flamenco me faz acordar", lembra
o poeta, em depoimento colhido
semanas antes de sua morte.
Depoimentos de muitos outros,
de Inês, filha do escritor, de seus
tradutores, de um toureiro, do
mais importante pintor espanhol
vivo, Antoni Tàpies, vão costurando "Recife/Sevilha", acompanhando imagens mais espanholas
que pernambucanas.
O excesso de "castanholas" da
produção é, por sinal, dos seus
poucos pontos baixos. A bailarina
de sevilhana, o cantor de "palo seco" (flamenco sem guitarra), as
imagens de bares de tapas transbordam, passando por vezes do
caráter de geografia sentimental
para o de guia turístico.
Mas os goles a mais de "jerez"
não comprometem. Logo vem o
poeta dizer que "a medida da vida
não é a morte, é a vida" -e aí as
imagens cheias de vida da Andaluzia até voltam a ganhar prumo.
Mas não serão essas as cenas
prediletas dos "cabralzófilos".
Pontuando "Recife/Sevilha" estão
imagens inéditas de super-8 com
o escritor em cenas cotidianas: se
divertindo em um balanço, brincando com um arco-e-flecha,
saindo de uma caverna.
E no meio dessas "expedições"
há ainda outras histórias saborosas, nem espanholas, nem pernambucanas. O escritor relembra, por exemplo, um encontro
que teve com Vinicius de Moraes
na Suíça, nos anos 60. O "poetinha" estava declamando seus versos líricos quando Cabral lhe dá
uma espetada, com voz marota (o
filme tem o áudio disso): "Sem ser
de amor você não sabe fazer, né?".
João Cabral, já velho, reafirma:
"Temos de escrever sobre copo de
água, não emoção ou saudade".
Recife/Sevilha
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