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COMENTÁRIO
Um grande contador de histórias
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
O centenário do nascimento de Erico Verissimo,
que, no Rio Grande do Sul, já está
sendo objeto de celebração, permite evocar a trajetória e a obra
do grande escritor gaúcho.
"Grande", a propósito, é um adjetivo que agora o distanciamento
histórico nos permite; em vida, o
escritor foi objeto de duras críticas por parte de vários setores da
intelectualidade brasileira.
Em primeiro lugar, pelo tipo de
escritor que era. Erico, que além
de escrever ficção tinha várias
ocupações -trabalhou na editora Globo, traduziu, escreveu para
o rádio-, pensava, antes de tudo,
no público. Escrevia contos e romances que, sem deixar de lado a
qualidade literária, eram acessíveis aos leitores. Para isso contribuía sua própria maneira de ser;
era um homem receptivo, amável.
As portas de sua casa estavam
sempre abertas a escritores, artistas. Quem quer que fosse a Porto
Alegre para um lançamento, uma
exposição, obrigatoriamente fazia-lhe uma visita. De outra parte,
era um narrador nato; modestamente intitulava-se um contador
de histórias, mas a verdade é que
uma boa história é, e sempre foi, a
base da boa literatura de ficção.
Seu modelo eram narradores
vastamente conhecidos, como Aldous Huxley, de quem traduziu
"Contraponto" (que lhe serviu de
modelo em "Caminhos Cruzados") ou John dos Passos. Claro
que críticos "high brow" não o
aceitavam, como não aceitavam
Huxley ou dos Passos.
A segunda causa de hostilidade
era o fato de ele ter vivido nos
EUA, onde lecionou literatura em
Berkeley e foi diretor do departamento de assuntos culturais da
União Pan-Americana. Aos olhos
da esquerda sectária da época, isso o tornava suspeito de ser
"agente do imperialismo". Situação que só mudou quando, durante o regime autoritário, o escritor assumiu posições corajosas
em defesa da democracia e da liberdade de expressão -recusou
o título de doutor honoris causa
da Universidade Federal do RS,
cuja direção expulsara professores considerados esquerdistas.
Finalmente é preciso considerar
que, de fato, a obra de Erico tem
momentos menores. "Saga", o romance que escreveu sobre a Guerra Civil Espanhola (baseado em
depoimento de um gaúcho que
participara das Brigadas Internacionais), não convence, soa artificial. Mas isso o próprio Erico reconhecia. Ele estava constantemente refazendo a sua carreira.
Partindo de uma temática inicial relacionada à classe média de
uma Porto Alegre ainda pequena
e provinciana, alargou seus horizontes ficcionais, seguindo para o
verdadeiro épico da história do
RS, que é a trilogia "O Tempo e o
Vento", que o consagrou. Isso não
o torna um escritor regionalista
como Simões Lopes Neto, que,
notável contista, ainda hoje está
restrito a um estreito círculo de
leitores por causa da linguagem
gauchesca, que exige um glossário
ao fim de cada conto.
Com sua vasta experiência, Erico soube combinar o regional
com o universal. Não é um escritor restrito ao Sul, mesmo porque
teve várias obras traduzidas no
exterior -nos EUA foi publicado
pelo respeitado editor Alfred
Knopf. É claro que, no clima de
mercado em que vivemos, a ausência do escritor prejudica a divulgação da obra; é preciso um
autor que apareça na TV, que dê
autógrafos e declarações, de preferência bombásticas. Mas Erico
tem um lugar definitivo na literatura brasileira. Ele é o grande intérprete literário do gauchismo,
que, numa época, foi muito influente em nosso país, sobretudo
através de caudilhos e de líderes
políticos como Getúlio Vargas.
Assim, lê-lo é essencial para a
compreensão da mentalidade
brasileira. Alguns de seus textos
estão esquecidos (caso da produção infanto-juvenil), mas, de maneira geral, sua obra continua
atual. Afinal, todo o mundo gosta
de uma boa história. E, quando se
fala em boas histórias, principalmente do ponto de vista literário,
o nome de Erico Verissimo não
pode ser olvidado.
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