São Paulo, sábado, 23 de outubro de 2004

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COMENTÁRIO

Um grande contador de histórias

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

O centenário do nascimento de Erico Verissimo, que, no Rio Grande do Sul, já está sendo objeto de celebração, permite evocar a trajetória e a obra do grande escritor gaúcho.
"Grande", a propósito, é um adjetivo que agora o distanciamento histórico nos permite; em vida, o escritor foi objeto de duras críticas por parte de vários setores da intelectualidade brasileira.
Em primeiro lugar, pelo tipo de escritor que era. Erico, que além de escrever ficção tinha várias ocupações -trabalhou na editora Globo, traduziu, escreveu para o rádio-, pensava, antes de tudo, no público. Escrevia contos e romances que, sem deixar de lado a qualidade literária, eram acessíveis aos leitores. Para isso contribuía sua própria maneira de ser; era um homem receptivo, amável.
As portas de sua casa estavam sempre abertas a escritores, artistas. Quem quer que fosse a Porto Alegre para um lançamento, uma exposição, obrigatoriamente fazia-lhe uma visita. De outra parte, era um narrador nato; modestamente intitulava-se um contador de histórias, mas a verdade é que uma boa história é, e sempre foi, a base da boa literatura de ficção.
Seu modelo eram narradores vastamente conhecidos, como Aldous Huxley, de quem traduziu "Contraponto" (que lhe serviu de modelo em "Caminhos Cruzados") ou John dos Passos. Claro que críticos "high brow" não o aceitavam, como não aceitavam Huxley ou dos Passos.
A segunda causa de hostilidade era o fato de ele ter vivido nos EUA, onde lecionou literatura em Berkeley e foi diretor do departamento de assuntos culturais da União Pan-Americana. Aos olhos da esquerda sectária da época, isso o tornava suspeito de ser "agente do imperialismo". Situação que só mudou quando, durante o regime autoritário, o escritor assumiu posições corajosas em defesa da democracia e da liberdade de expressão -recusou o título de doutor honoris causa da Universidade Federal do RS, cuja direção expulsara professores considerados esquerdistas.
Finalmente é preciso considerar que, de fato, a obra de Erico tem momentos menores. "Saga", o romance que escreveu sobre a Guerra Civil Espanhola (baseado em depoimento de um gaúcho que participara das Brigadas Internacionais), não convence, soa artificial. Mas isso o próprio Erico reconhecia. Ele estava constantemente refazendo a sua carreira.
Partindo de uma temática inicial relacionada à classe média de uma Porto Alegre ainda pequena e provinciana, alargou seus horizontes ficcionais, seguindo para o verdadeiro épico da história do RS, que é a trilogia "O Tempo e o Vento", que o consagrou. Isso não o torna um escritor regionalista como Simões Lopes Neto, que, notável contista, ainda hoje está restrito a um estreito círculo de leitores por causa da linguagem gauchesca, que exige um glossário ao fim de cada conto.
Com sua vasta experiência, Erico soube combinar o regional com o universal. Não é um escritor restrito ao Sul, mesmo porque teve várias obras traduzidas no exterior -nos EUA foi publicado pelo respeitado editor Alfred Knopf. É claro que, no clima de mercado em que vivemos, a ausência do escritor prejudica a divulgação da obra; é preciso um autor que apareça na TV, que dê autógrafos e declarações, de preferência bombásticas. Mas Erico tem um lugar definitivo na literatura brasileira. Ele é o grande intérprete literário do gauchismo, que, numa época, foi muito influente em nosso país, sobretudo através de caudilhos e de líderes políticos como Getúlio Vargas.
Assim, lê-lo é essencial para a compreensão da mentalidade brasileira. Alguns de seus textos estão esquecidos (caso da produção infanto-juvenil), mas, de maneira geral, sua obra continua atual. Afinal, todo o mundo gosta de uma boa história. E, quando se fala em boas histórias, principalmente do ponto de vista literário, o nome de Erico Verissimo não pode ser olvidado.


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