|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ
O avacalhado charme da aristocracia
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Quem acompanha a telenovela "Senhora do Destino" nota que uma das personagens mais
interessantes da trama é uma das
que menos aparecem: o mordomo Alfred, vivido de modo formidável pelo ator Ítalo Rossi. Discreto e irônico até a última raiz dos
escassos cabelos, Alfred é uma
reencarnação dessa figura típica
da comédia de costumes: o lacaio
fleumático, que tolera as humilhações do patrão e acaba tirando-o das enrascadas -mostrando assim quem de fato possui nobreza de espírito.
Associado à subliteratura policial ("o assassino é sempre o mordomo"), transformado em vilão
de desenho animado ("Aristogatas"), essa versão moderna do escudeiro e do "valet de chambre"
encontrou o momento mais feliz
pela pena do inglês Pelham Grenville Wodehouse (1881-1975).
Filho de um funcionário público, empregado de bancos britânicos em Xangai e Hong Hong, Wodehouse ganhou a vida escrevendo textos satíricos sobre a decadente aristocracia de seu país
-principalmente na série que
tem como protagonistas o jovem
dândi Bertram Wooster e seu
mordomo, Jeeves.
Dois desses romances acabam
de ser lançados no Brasil: "Então
Tá, Jeeves" e "Sem Dramas, Jeeves". As histórias fazem referência
a intrigas desenvolvidas em livros
anteriores, mas são independentes, lembrando a estrutura das séries de TV (aliás, nos anos 90 a dupla de Wodehouse gerou o seriado "Jeeves and Wooster", com
Stephen Fry e Hugh Laurie).
Assim como nas telenovelas, em
que núcleos distintos acabam se
encontrando graças a acasos miraculosos, nos dois romances há
várias tramas paralelas, com personagens que acabam confluindo
para um mesmo lugar -gerando
qüiproquós que se resolvem na
base da barganha e da trapaça.
Em "Sem Dramas, Jeeves", por
exemplo, Wooster vai a Toleigh
Towers, casa de campo dos Bassett, onde é considerado "persona
non grata", por conta da tentativa
de roubo de uma peça de prata.
Sua missão é ajudar Gussie Fink-Nottle -um boçal que passa a vida criando tritões (espécie de salamandra)- a conquistar Madeline Bassett; caso contrário, ele
mesmo se veria obrigado a desposá-la, por causa de demonstrações
de afeto mal interpretadas.
De quebra, Wooster se mete na
disputa por uma estatueta de âmbar (sendo flagrado por Bartolomiau, o furioso cão dos Bassett),
no romance de um pastor que
precisa de um vicariato para poder se casar, e em incursões noturnas pelos bastidores da casa,
onde a cozinheira Emerald Stoker
prepara quitutes que burlam o
cardápio vegetariano da anfitriã.
Wodehouse é um mestre em alinhavar essas cenas estapafúrdias,
dando a sensação de estarmos assistindo a comédias de Ernst Lubitsch ou Billy Wilder. E, embora
tenha morrido nos anos 70, o escritor é um representante típico
do entre-guerras, quando a afetação da sociedade vitoriana era
apenas ridícula e a história ainda
não se transformara em pesadelo.
Uma leitura atenta mostrará
que a farsa de Wodehouse não se
limita ao plano temático, pois há
também uma alternância de identidades que percorre sua escrita:
Wooster é o narrador que traça a
caricatura da tia rabugenta que
"come garrafas quebradas" ou de
donzelas que acreditam em gnomos e vivem na atmosfera
"kitsch" dos pré-rafaelitas.
Mas é Jeeves que -reprovando
as inovações na indumentária do
patrão ou explicando-lhe referências a poetas como Browning e
Tennyson- intervém na hora
certa, manipula silenciosamente
as personagens e conduz as coisas
até o feliz desfecho. Nesse sentido,
é ele o verdadeiro alter ego desse
escritor que contemplava de fora,
sem nenhum ressentimento e
com muita graça, a doce vida dessa nobreza esculhambada.
Finalmente, uma correção: no
último "Rodapé", forneci dados
incorretos sobre o livro resenhado. "Estranhas Experiências e Outros Poemas", de Claudio Willer
(ed. Lamparina), custa R$ 28 e
tem 144 páginas.
Então Tá, Jeeves
Autor: P.G. Wodehouse
Tradutora: Beth Vieira
Editora: Globo
Quanto: R$ 32 (286 págs.)
Sem Dramas, Jeeves
Autor: P.G. Wodehouse
Tradutora: Beatriz Sidou
Editora: Globo
Quanto: R$ 32 (224 págs.)
Texto Anterior: Comentário: Um grande contador de histórias Próximo Texto: Literatura: Dinis Machado faz sua "Volta ao Mundo" Índice
|