São Paulo, sábado, 23 de outubro de 2004

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LITERATURA

Prosa de autor lisboeta estréia no Brasil com "O que Diz Molero", marco da ficção portuguesa que virou peça

Dinis Machado faz sua "Volta ao Mundo"

VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

O lisboeta Dinis Machado tem 74 anos e fuma há 60. Por causa do tabaco, está a arrebentar os pulmões, como diz. Carrega um cateter no corpo. A resistência física não lhe é como dantes, quando a "bússola doida do coração" apontou para a mulher, a mezzo-soprano Dulce Cabrita, mãe de Rita, nascida há 40 anos.
Ao telefone, o escritor emana um tanto da melancolia portuguesa, misturada a uma solidão irônica, de sorrisos dóceis feito um avô que sempre tem uma boa história para contar.
Pois finalmente chegou a vez de o Brasil ler a prosa de Machado, ele que chegou antes, em 2003, por meio do espetáculo teatral "O que Diz Molero", encenado por Aderbal Freire-Filho. O mesmo romance, já traduzido para o espanhol, húngaro, romeno e alemão, é lançado agora no Brasil.
Machado é jornalista. No final dos anos 60, publicou romances policiais sob pseudônimo. Mas a obra que o projetou, já assinando Dinis Machado, foi este "O que Diz Molero" (1977), marco da ficção portuguesa na esteira da Revolução dos Cravos, o movimento dos capitães que pôs fim à ditadura no país, em abril de 1974.
"O livro reflete, em parte, a atmosfera da Lisboa após os anos 30, o surgimento dos bairros populares, quando as crianças praticavam jogos e brincadeiras nas ruas", diz Machado.
Segundo o autor, trata-se de uma aventura à moda de Julio Verne ("Volta ao Mundo em 80 Dias"). Tem-se a trajetória de um anti-herói como num efeito espiral, vertiginoso.
É mais ou menos assim: os investigadores Mister DeLuxe e Austin lêem um relatório sobre a vida de Rapaz. O dossiê foi preparado por um terceiro colega deles, Molero. São transcrições verbais e escritas do passado, epopéia feita da matéria dos sonhos, da infância à vida adulta do Rapaz, retratado sob certa obsessão por Molero. A obsessão é tanta que ele se identifica com o investigado, até esboçando traços psicológicos.
A história é povoada de personagens laterais, alguns com brevíssimas introduções biográficas. Outros protagonizam encontros marcantes com o Rapaz. Como a atriz "la petite Mireille", o vizinho Leduc, ginasta que termina numa cadeira de rodas, e o solitário Erculano, com quem aprende a esperar a "palavra-resumo das fontes do instinto". Machado transita por aspectos profundos e bizarros da existência, como a desnudar "o corpo que a alma tem", na base do amor, do humor e da dor.
É uma escrita que traz referências do cinema e sobretudo da poesia. "Eu sempre gostei mais dos poetas do que dos prosadores. Da língua portuguesa, a que conheço bem, gosto de quase todos, como Pessoa, Camões, Camilo Peçanha e Castro Alves", diz Machado. O Rapaz chega a citar Manuel Bandeira no livro.
Na capa do seu último romance, "Reduto Quase Final" (1989), a luz do sol reflete numa cadeira de balanço vazia. Machado define aquele livro como "um ajuste de contas com a literatura", também naquelas páginas elevada à categoria de personagem.


O QUE DIZ MOLERO. Autor: Dinis Machado. Tradutora: Karina Jannin. Editora: José Olympio. Quanto: R$ 24 (210 págs.).


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