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FERNANDO GABEIRA
Notas sobre um sarau em Brasília
Quando o marxismo me
frustrou como explicação do
mundo, fui chorar no ombro da
antropologia. Devo muito a essa
disciplina, mas fui infiel a ela, antes mesmo de deixar o curso em
Estocolmo.
Notícias banais, como o encontro do presidente com a cúpula do
PTB em Brasília, deixam uma
certa fome de interpretação que a
simples análise política não consegue saciar.
O objetivo almejado pelos anfitriões era um afago público do
presidente. Emerge aí uma dimensão que merecia um estudo
específico: afago público do presidente. Para os políticos, isso representa prestígio, uma vez que
seu poder pode ser medido pela
proximidade com o dirigente máximo do país.
Na China, por exemplo, as coisas eram mais complicadas. Era
preciso analisar a posição das
pessoas no palanque para inferir
o grau de poder e, em caso de modificações, avaliar o resultado das
lutas políticas internas.
O afago de um presidente tem
um valor político e um valor sentimental, sobretudo quando se
trata de um anônimo na multidão.
Constatei em centenas de comícios como certas pessoas clamam
para serem vistas e receberem um
aceno do líder. Ele encarna o reconhecimento público e, ao reconhecer um rosto na multidão, o
integra nessa corrente de emoções
e esperanças.
O jantar de Brasília foi na verdade um sarau, com um pianista
e uma soprano. Era um encontro
de casais e, naturalmente, estava
lá a mulher do presidente. No
Brasil, chamamos as mulheres
dos presidentes de dona. Como
nas novelas de época do SBT, dona Antônia, dona Beija.
A escolha da soprano e do pianista representava uma intenção
de introduzir uma diversão sadia
e intelectualizada. Foi uma escolha do anfitrião, Roberto Jefferson, que estuda canto das 7h às
9h. Segundo seu relato, dedicava-se ao tiro ao alvo, mas resolveu
buscar outra atividade para relaxar.
Do tiro ao alvo ao sarau não parece ter havido grande ganho em
relaxamento. No entanto um atirador, ao abandonar as armas e
cantar "Eu Sei que Vou te Amar",
revela uma transição brusca. O
primeiro impulso previsível talvez
fosse uma banda de heavy metal.
Não é a questão central.
O centro para mim seria examinar como encontro político, que
pressupõe uma intensa troca racional, mergulho tanto no terreno
das emoções que, a certa altura, a
julgar pelas notícias, a soprano foi
para os ares ao som de "Sentimental Demais", de Altemar Dutra, cantado pelo anfitrião.
Todo o mistério desse noite concentra-se nessa troca emocional,
revelando que a moeda política
clássica, cargo, funções, ajuda
material, pode ser enriquecida
com o componente afetivo, abraços, canções, afagos.
Políticos são muito volúveis.
Quando cantam "Eu Sei que Vou
te Amar", sabem que aquele verso
"por toda a minha vida" não é
para valer. Isso não os diferencia
dos amantes. Quantas vezes cantamos o verso "por toda a minha
vida" e nos perdemos na primeira
esquina?
A diferença dos amantes é que
acreditam no que cantam e ficam
arrasados quando constatam que
tudo acabou.
Neste momento, no Brasil, afagos, como posições no palanque
chinês, devem ser analisados e podem ser um instrumento adicional ao entendimento da história.
O único detalhe é saber se o sarau de Brasília vai ajudar a transformarmos o tiroteio nos morros
do Rio numa grande sinfonia. Ou
fazer com que a favela de Bel-Air
em Porto Príncipe, em vez de se
rebelar contra a derrubada de
Aristides, toque "Someday My
Prince Will Come".
Esse jantar de codornas recheadas foi preparado para nós. Os
jornais nos deram os dados. Você
vê os homens de pé diante de um
sofá vermelho onde há uma bolsa
preta. Isso indica que as mulheres
foram afastadas para que a mensagem politíco-sentimental tivesse um foco no acordo de cavalheiros.
O presidente parece um pouco
surpreendido, arrumando a roupa como se a coisa tivesse acontecido rápido demais para ele. Todos os olhares se voltam para o
anfitrião. Uma das araras do
quadro ao fundo abaixa a cabeça, mas democracia é isso mesmo.
O anfitrião do presidente mostrou que é possível passar do tiro
ao alvo para o samba-canção. O
próximo passo é passar de uma
novela de época do SBT para os
grandes problemas do nosso século.
Creio que é o desejo majoritário
dos convivas simbólicos do jantar, os que acompanharam pelos
jornais. Pode ser que uma minoria sensível, a soprano quem sabe,
preferisse os tiros de pistola à interpretação musical de Jefferson.
Mais uma vez: é a democracia.
Se excluirmos os pessimistas José
Simão, Diogo Mainardi e Casseta
e Planeta, que bombardeiam nossa auto-estima, todos acharemos
isso muito sério.
Mesmo sabendo que o presidente não cantou naquela noite, intuímos que um clima musical envolve o Planalto. O samba-canção, como filosofia ou roupa íntima, é sempre mensagem de estabilidade.
Nem sempre nossas mensagens
são entendidas. Acreditamos que
uma partida de futebol ajudasse
a resolver o drama de dois séculos
do Haiti. Quem sabe, um bom Altemar Dutra não vem a nosso socorro?
Eles vão continuar jantando,
trocando afagos e cantando "Eu
Sei que Vou te Amar". Como mineiro, não posso abaixar a cabeça
como a arara nem deixar a bolsa
no sofá e sair da sala. Olhe bem as
montanhas, clamam alguns muros de nossa Província.
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