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ARNALDO JABOR
Computador resolve problemas que não tínhamos
Outro dia, li um artigo do João
Ubaldo Ribeiro sobre seu calvário
com os computadores; mais precisamente sobre as humilhações
que lhe inflige seu Compaq. "Ainda bem que o meu é Apple", pensei, com esperança de ser mais
bem tratado, já que o Steve Jobs é
mais legal que o careta do Bill Gates. Mesmo assim, aterrorizou-me
ver que Ubaldo, apesar de suas lamúrias, está muito mais avançado do que eu, falando com displicência coquete em "fax browser" e
"omnipage", nomes que me
"acoelham" de medo.
Como já disse Rubem Braga, eu
sou do tempo em que os telefones
eram pretos e as geladeiras, brancas. Eu sou do tempo em que se
formavam filas em Botafogo para
ver a inauguração das escadas rolantes da Sears, eu vi o nascimento do primeiro hambúrguer no
primeiro Bob's ali em Copa, o que
me deu essa trêmula incapacidade eletroinformática. E não digo
isso com disfarçado orgulho, como se eu tivesse cacoetes anacrônicos típicos de gênios inadaptados. Não. Eu queria mesmo era
ser um Eurípedes Alcântara, uma
Cora Rónai, um Rubem Fonseca.
Sou um "handicaped" digital.
Vejo a evolução dos celulares com
desconforto, sabendo que alguns
já atendem a comandos orais e
que talvez respondam malcriadamente. Tenho medo de microondas, principalmente nos Estados
Unidos, onde eles nos humilham,
emitindo sinais reprobatórios se
os deixamos abertos por mais de
30 segundos.
Contudo, devo reconhecer que
este meu papo careca está servindo para retardar uma vergonhosa
confissão, que é a seguinte: eu
quebro computadores. Não que
eu os destrua no frenesi de ódio
desesperado diante de seu enigma, com o som e a fúria dos idiotas. Meu drama é mais triste: eu
provoco panes em aparelhos.
Evoluí muito nos últimos 20
anos. Tenho uma razoável convivência com telefones sem fio, uso
com desenvoltura calculadoras
simples, consigo tirar dinheiro de
bancos 24 horas, mas, muitas vezes, telas se apagaram à minha
chegada, controles enlouqueceram, vírus atacaram.
Houve uma noite -tremo ao
lembrar- em que terminei um
artigo e, triunfante, ativei o fax
modem para enviá-lo ao jornal.
Foi terrível. Um alarme (ou uma
vaia?) soou, e tudo se apagou em
negra treva. Eu tinha atravessado
a aridez de três desertos para escrevê-lo, quando tudo morreu.
Em pânico, implorei socorro a minha mulher, que me emprestou,
de nariz torcido, o seu Mac para
que eu não fosse despedido por
abandono de emprego. Tive de escrever tudo de novo, como um camelo em fim de caravana.
No entanto, acreditem, vi com
olhos aterrados o computador de
Suzana finar-se também diante
de mim, com um vagido lúgubre.
O seu temor se confirmara: eu era
uma espécie de parapsicólogo ao
avesso, que desliga sistemas. Ela
me acusava com o dedo, hirta de
ódio, gritando: "Sai, fica longe!
Sai daqui, que você destrói o que
toca! Você é um vírus!". Eu, pálido
de vergonha, berrava: "Abaixo o
fax modem, jamais o usarei! Use-o você, sua "moderninha" ridícula,
que eu reescreverei tudo à mão! À
mim, uma Bic!". No dia seguinte,
um competente técnico chileno,
com um sorriso desdenhoso, fez
um "restart", e tudo funcionou,
claro, mas comigo longe, banido
para outro aposento.
Fatos como esse me levaram a
recorrer a estranhos expedientes
místicos, a pequenos sortilégios,
como, por exemplo, rezar durante
o "downloading" de um arquivo
PC para o Mac. E, em verdade vos
digo, a oração tem grandes méritos em momentos de "crashs" súbitos e negros "apagões". Se bem
que as rezas eu guardo para manobras inusitadas. No dia-a-dia,
tomo precauções mais simples,
como, por exemplo, jamais sair de
perto do Mac durante o envio de
um fax, nunca despregando o
olho da coluninha que vai se esvaindo no ritmo dos "bips".
Qualquer desatenção pode reverter o envio, com um trinado
dizendo: "Seu fax foi recolhido
num lugar misterioso, onde ficará
por toda a eternidade".
Minha entrada na Internet foi
precedida por meses de suspense e
medo. Parecia que eu ia iniciar
uma viagem a um planeta distante ou a um subúrbio perigoso,
Marte ou Belfort Roxo. Um bom
amigo me levou pela mão na primeira viagem. Para me animar,
falou: "Vou digitar seu nome. Veja como você está presente na Internet". Com efeito, apareceram
na tela várias referências a minha
pobre pessoa, o que fortificou meu
ego. Entusiasmado, escolhi uma
entrada. Oh! Infortúnio!
Apareceu-me um site piscando
com a frase sinistra: "Eu odeio o
Jabor". Juro que é verdade. Cinéfilos ignorantes e rancorosos, depois da fatídica noite do Oscar de
98, quando ousei chamar o Robin
Williams de canastrão e o "Titanic" de abacaxi, inauguraram esse site para enxovalhar meu nome, o que até hoje me enlameia
no "cyberspace". Ficou-me o
trauma. Viajo na Internet, sim,
mas com a timidez sabuja de um
clandestino, sempre com pavor de
ser assaltado em sites escuros e
malfrequentados.
A verdade é que, mesmo na calmaria, enquanto escrevo meus
pobres textos, percorre-me uma
friagem na alma por estar usando
tecnologia de ponta para meus
conceitos toscos, como num exame diante de um cientista severo.
Meu medo, portanto, é anterior
ao computador, já estava em minha alma desde sempre, colonial
e servil. Devo-o, talvez, ao hábito
que meu pai, engenheiro e militar, tinha de ensinar-me matemática apertando-me a nuca entre dois dedos em ferozes tenazes.
Ficou-me um grave complexo de
inferioridade. Sei que o Mac me
olha com desdém. Sei que ele é superior a mim.
A única coisa que posso dizer
em minha defesa é que o computador veio resolver problemas que
nós não tínhamos! Até orgulho-me um pouco de minha incompetência, pois ela é uma defesa contra tanta eficiência, tantos megabytes, tantos gigabytes, tantos
"gilgameshes" e "golias digitais",
para que eles não apaguem totalmente minha memória, povoada
de um Brasil mais antigo, de tardes mais lentas em Copacabana,
de rostos de mulheres, lembranças calmas de um país que andava devagar, mas ainda longe deste buraco negro sem fundo. Não
posso deletar tudo que fui.
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