São Paulo, Terça-feira, 23 de Novembro de 1999
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ARNALDO JABOR
Computador resolve problemas que não tínhamos

Outro dia, li um artigo do João Ubaldo Ribeiro sobre seu calvário com os computadores; mais precisamente sobre as humilhações que lhe inflige seu Compaq. "Ainda bem que o meu é Apple", pensei, com esperança de ser mais bem tratado, já que o Steve Jobs é mais legal que o careta do Bill Gates. Mesmo assim, aterrorizou-me ver que Ubaldo, apesar de suas lamúrias, está muito mais avançado do que eu, falando com displicência coquete em "fax browser" e "omnipage", nomes que me "acoelham" de medo.
Como já disse Rubem Braga, eu sou do tempo em que os telefones eram pretos e as geladeiras, brancas. Eu sou do tempo em que se formavam filas em Botafogo para ver a inauguração das escadas rolantes da Sears, eu vi o nascimento do primeiro hambúrguer no primeiro Bob's ali em Copa, o que me deu essa trêmula incapacidade eletroinformática. E não digo isso com disfarçado orgulho, como se eu tivesse cacoetes anacrônicos típicos de gênios inadaptados. Não. Eu queria mesmo era ser um Eurípedes Alcântara, uma Cora Rónai, um Rubem Fonseca.
Sou um "handicaped" digital. Vejo a evolução dos celulares com desconforto, sabendo que alguns já atendem a comandos orais e que talvez respondam malcriadamente. Tenho medo de microondas, principalmente nos Estados Unidos, onde eles nos humilham, emitindo sinais reprobatórios se os deixamos abertos por mais de 30 segundos.
Contudo, devo reconhecer que este meu papo careca está servindo para retardar uma vergonhosa confissão, que é a seguinte: eu quebro computadores. Não que eu os destrua no frenesi de ódio desesperado diante de seu enigma, com o som e a fúria dos idiotas. Meu drama é mais triste: eu provoco panes em aparelhos.
Evoluí muito nos últimos 20 anos. Tenho uma razoável convivência com telefones sem fio, uso com desenvoltura calculadoras simples, consigo tirar dinheiro de bancos 24 horas, mas, muitas vezes, telas se apagaram à minha chegada, controles enlouqueceram, vírus atacaram.
Houve uma noite -tremo ao lembrar- em que terminei um artigo e, triunfante, ativei o fax modem para enviá-lo ao jornal. Foi terrível. Um alarme (ou uma vaia?) soou, e tudo se apagou em negra treva. Eu tinha atravessado a aridez de três desertos para escrevê-lo, quando tudo morreu. Em pânico, implorei socorro a minha mulher, que me emprestou, de nariz torcido, o seu Mac para que eu não fosse despedido por abandono de emprego. Tive de escrever tudo de novo, como um camelo em fim de caravana.
No entanto, acreditem, vi com olhos aterrados o computador de Suzana finar-se também diante de mim, com um vagido lúgubre. O seu temor se confirmara: eu era uma espécie de parapsicólogo ao avesso, que desliga sistemas. Ela me acusava com o dedo, hirta de ódio, gritando: "Sai, fica longe! Sai daqui, que você destrói o que toca! Você é um vírus!". Eu, pálido de vergonha, berrava: "Abaixo o fax modem, jamais o usarei! Use-o você, sua "moderninha" ridícula, que eu reescreverei tudo à mão! À mim, uma Bic!". No dia seguinte, um competente técnico chileno, com um sorriso desdenhoso, fez um "restart", e tudo funcionou, claro, mas comigo longe, banido para outro aposento.
Fatos como esse me levaram a recorrer a estranhos expedientes místicos, a pequenos sortilégios, como, por exemplo, rezar durante o "downloading" de um arquivo PC para o Mac. E, em verdade vos digo, a oração tem grandes méritos em momentos de "crashs" súbitos e negros "apagões". Se bem que as rezas eu guardo para manobras inusitadas. No dia-a-dia, tomo precauções mais simples, como, por exemplo, jamais sair de perto do Mac durante o envio de um fax, nunca despregando o olho da coluninha que vai se esvaindo no ritmo dos "bips".
Qualquer desatenção pode reverter o envio, com um trinado dizendo: "Seu fax foi recolhido num lugar misterioso, onde ficará por toda a eternidade".
Minha entrada na Internet foi precedida por meses de suspense e medo. Parecia que eu ia iniciar uma viagem a um planeta distante ou a um subúrbio perigoso, Marte ou Belfort Roxo. Um bom amigo me levou pela mão na primeira viagem. Para me animar, falou: "Vou digitar seu nome. Veja como você está presente na Internet". Com efeito, apareceram na tela várias referências a minha pobre pessoa, o que fortificou meu ego. Entusiasmado, escolhi uma entrada. Oh! Infortúnio!
Apareceu-me um site piscando com a frase sinistra: "Eu odeio o Jabor". Juro que é verdade. Cinéfilos ignorantes e rancorosos, depois da fatídica noite do Oscar de 98, quando ousei chamar o Robin Williams de canastrão e o "Titanic" de abacaxi, inauguraram esse site para enxovalhar meu nome, o que até hoje me enlameia no "cyberspace". Ficou-me o trauma. Viajo na Internet, sim, mas com a timidez sabuja de um clandestino, sempre com pavor de ser assaltado em sites escuros e malfrequentados.
A verdade é que, mesmo na calmaria, enquanto escrevo meus pobres textos, percorre-me uma friagem na alma por estar usando tecnologia de ponta para meus conceitos toscos, como num exame diante de um cientista severo.
Meu medo, portanto, é anterior ao computador, já estava em minha alma desde sempre, colonial e servil. Devo-o, talvez, ao hábito que meu pai, engenheiro e militar, tinha de ensinar-me matemática apertando-me a nuca entre dois dedos em ferozes tenazes. Ficou-me um grave complexo de inferioridade. Sei que o Mac me olha com desdém. Sei que ele é superior a mim.
A única coisa que posso dizer em minha defesa é que o computador veio resolver problemas que nós não tínhamos! Até orgulho-me um pouco de minha incompetência, pois ela é uma defesa contra tanta eficiência, tantos megabytes, tantos gigabytes, tantos "gilgameshes" e "golias digitais", para que eles não apaguem totalmente minha memória, povoada de um Brasil mais antigo, de tardes mais lentas em Copacabana, de rostos de mulheres, lembranças calmas de um país que andava devagar, mas ainda longe deste buraco negro sem fundo. Não posso deletar tudo que fui.


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