São Paulo, Quinta-feira, 23 de Dezembro de 1999


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GUERRA
Livro possibilita compreensão de nossa barbárie

OSVALDO COGGIOLA
especial para a Folha


Andrés Calamaro, ícone do rock argentino, acaba de lançar um disco chamado "Honestidade Brutal": esse seria, também, o conceito que melhor conviria a um comentário de "Kosovo - A Guerra dos Covardes", livro de Kennedy Alencar, editor da coluna Painel, da Folha, sobre a guerra nos Bálcãs.
Kennedy declara, de saída, que quando foi cobrir a guerra (como enviado especial do jornal) ainda acreditava no "direito moral" da Otan de intervir contra a "limpeza étnica" levada adiante pelo exército sérvio contra os kosovares de origem albanesa (a grande maioria dos kosovares). E reconhece que a operação "humanitária" resultou em outra "limpeza étnica", de signo oposto, coberta... pela própria Otan. As causas profundas da guerra, então, não se encontram no campo da moral.
O risco dos livros-reportagem, é bem sabido, consiste em que o imediatismo espetacular dos fatos esconda as causas histórico-políticas profundas. A literatura e a iconografia sobre a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, parecem obedecer à seguinte lei: quanto mais recheada de relatos de heroísmo, ou de horror, quanto melhor ilustrada, mais ocultas as suas razões profundas, geralmente reduzidas a um par de banalidades acerca do conflito entre "totalitarismo" e "democracia", que constituem o substrato da ideologia (mitologia) contemporânea, muito mais forte do que a mitologia antiga, porque laica e aparentemente "racional".
Kennedy atacou de frente este problema. Os relatos e depoimentos são acompanhados por informações históricas acerca do povoamento dos Bálcãs, do papel de Kosovo na formação da nacionalidade sérvia e de seu valor simbólico atual, da passagem da Iugoslávia dinástica do Tratado de Versalhes à Iugoslávia socialista de Tito e da progressiva decomposicão desta a partir de 1989, quando o "ex-comunista" Slobodan Milosevic decidiu tirar de vez o demônio nacionalista da garrafa.
Mas o aparecimento de forças centrífugo-nacionalistas não foi um fato exclusivo da Iugoslávia. Foi um fenômeno geral no ex-"campo socialista" (especialmente na ex-URSS), ao qual não foi alheia a política das grandes potências, o que Kennedy apenas cita ao mencionar o papel da Alemanha como encorajadora do separatismo esloveno e croata em 1991 (enquanto os EUA apostavam, ainda, numa Iugoslávia reunificada como uma "Grande Sérvia", por obra e graça do mesmo Slobodan Milosevic, depois tornado vilão, assim como acontecera com Saddam Hussein).
Fugir do "conspirativismo" (das grandes potências) não significa cair no extremo oposto, do qual Kennedy chega mais do que perto quando conclui que "a Otan subestimou o ditador iugoslavo e não previu o acirramento da política de limpeza étnica (depois do início dos ataques aéreos)".
No contexto geral do livro, esses problemas são, porém, secundários. A descrição do cotidiano da guerra em Belgrado e Pristina, os relatos e as opiniões colhidas "in situ" constituem um material histórico de valor inestimável. E também único, pois só podiam ser obtidas naquela hora, naquele lugar, e quem duvida que era necessária boa dose de coragem para estar nesse lugar, nessa hora?
As famílias divididas pelas opiniões, o medo da espionagem e da delação, a vontade de depor apesar desse risco, a oposição do povo sérvio à intervenção da Otan (inclusive daqueles que se opunham a Milosevic), os massacres provocados pelos bombardeios, chamados de "erros" ou "danos colaterais", o drama do(s) povo(s) sem alternativas, dependentes por inteiro de decisões tomadas por cima deles, sem possibilidades imediatas de pressão ou de controle, a desmoralização de uma juventude que luta para ficar e sonha em fugir...
Os mitos caem um a um: "Até meus 26, 27 anos, eu não sabia o que era racismo!", diz um sérvio: o decantado papel do "ódio ancestral" dos povos balcânicos fica reduzido à sua verdadeira dimensão, não maior, talvez até menor, da que existe no Brasil entre sulistas e nordestinos, ou na América do Sul entre chilenos (ou brasileiros) e argentinos. O racismo não é uma pulsão animal sobrevivente na natureza humana (aceitá-lo seria subscrever inconscientemente a teoria hitleriana do gênero humano exposta em "Mein Kampf"), mas o resultado de uma situação histórica e política.
A riqueza do contato direto de Kennedy com o cotidiano do país em guerra também deve muito ao fato de ser brasileiro (ou latino-americano). No mundo da mídia internacional também há cidadãos de primeira e segunda classe. À imprensa do "Primeiro Mundo" estão garantidos os "lugares reservados", nos hotéis, nas excursões ao teatro dos acontecimentos, nos meios de transmissão. Aos brasileiros cabe o "jeitinho", baixar a guarda de soldados ou populares puxando conversa sobre Carnaval, Ronaldinho, Pelé (os argentinos fazem o mesmo com Maradona e o tango). Dificilmente um repórter norte-americano ou europeu poderá escrever um livro como o de Kennedy.
Kennedy só deixa um mito em pé: o do "ditador louco" (Milosevic). Que Milosevic seja um ditador, ninguém duvida. Quanto a louco, ninguém sabe, mas, de qualquer modo, introduzir a loucura de um indivíduo como fator de explicação histórica costuma ocultar mais do que esclarecer (a suposta loucura "expansionista" ou "homicida" de Hitler tem sido um meio de obscurecimento dos processos históricos reais por trás da guerra e do Holocausto).
O apoio da população a Milosevic, quando este se recusa a assinar o Tratado de Rambouillet, proposto pelos EUA -o que leva ao ataque militar da Otan- que postula o retalhamento da Iugoslávia e, sobretudo, visa a ocupação militar sine die do país: isto não é invenção da mídia sérvia. Os depoimentos colhidos por Kennedy o deixam claro (que o livro conclua com um depoimento esperançoso, ou desesperado, em que a Otan ajude agora a derrubar Milosevic não demonstra senão o grau da desmoralização provocado pela derrota: o que teria isso de "democrático"?).
O repórter se deixou envolver pelos fatos; a testemunha virou partícipe, a brutalidade da situação fez tocar e ultrapassar os limites da "objetividade": sem isso, não há sensibilidade, e sem sensibilidade, não há compreensão. Bem escrito e com ilustrações impressionantes, "Kosovo, A Guerra dos Covardes" é um livro imprescindível para compreender a barbárie do mundo em que vivemos.


Osvaldo Coggiola é professor de história contemporânea da USP, autor de "Imperialismo e Guerra na Iugoslávia" (Editora Xamã, 1999), entre outros.

Avaliação:     


Livro: Kosovo - A Guerra dos Covardes Autor: Kennedy Alencar Editora: DBA Quanto: R$ 25 (234 págs.)


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