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GUERRA
Livro possibilita compreensão de nossa barbárie
OSVALDO COGGIOLA
especial para a Folha
Andrés Calamaro, ícone do rock
argentino, acaba de
lançar um disco
chamado "Honestidade Brutal": esse
seria, também, o conceito que
melhor conviria a um comentário
de "Kosovo - A Guerra dos Covardes", livro de Kennedy Alencar, editor da coluna Painel, da
Folha, sobre a guerra nos Bálcãs.
Kennedy declara, de saída, que
quando foi cobrir a guerra (como
enviado especial do jornal) ainda
acreditava no "direito moral" da
Otan de intervir contra a "limpeza
étnica" levada adiante pelo exército sérvio contra os kosovares de
origem albanesa (a grande maioria dos kosovares). E reconhece
que a operação "humanitária" resultou em outra "limpeza étnica",
de signo oposto, coberta... pela
própria Otan. As causas profundas da guerra, então, não se encontram no campo da moral.
O risco dos livros-reportagem, é
bem sabido, consiste em que o
imediatismo espetacular dos fatos
esconda as causas histórico-políticas profundas. A literatura e a
iconografia sobre a Segunda
Guerra Mundial, por exemplo,
parecem obedecer à seguinte lei:
quanto mais recheada de relatos
de heroísmo, ou de horror, quanto melhor ilustrada, mais ocultas
as suas razões profundas, geralmente reduzidas a um par de banalidades acerca do conflito entre
"totalitarismo" e "democracia",
que constituem o substrato da
ideologia (mitologia) contemporânea, muito mais forte do que a
mitologia antiga, porque laica e
aparentemente "racional".
Kennedy atacou de frente este
problema. Os relatos e depoimentos são acompanhados por informações históricas acerca do povoamento dos Bálcãs, do papel de
Kosovo na formação da nacionalidade sérvia e de seu valor simbólico atual, da passagem da Iugoslávia dinástica do Tratado de Versalhes à Iugoslávia socialista de
Tito e da progressiva decomposicão desta a partir de 1989, quando
o "ex-comunista" Slobodan Milosevic decidiu tirar de vez o demônio nacionalista da garrafa.
Mas o aparecimento de forças
centrífugo-nacionalistas não foi
um fato exclusivo da Iugoslávia.
Foi um fenômeno geral no ex-"campo socialista" (especialmente na ex-URSS), ao qual não foi
alheia a política das grandes potências, o que Kennedy apenas cita ao mencionar o papel da Alemanha como encorajadora do separatismo esloveno e croata em
1991 (enquanto os EUA apostavam, ainda, numa Iugoslávia reunificada como uma "Grande Sérvia", por obra e graça do mesmo
Slobodan Milosevic, depois tornado vilão, assim como acontecera com Saddam Hussein).
Fugir do "conspirativismo"
(das grandes potências) não significa cair no extremo oposto, do
qual Kennedy chega mais do que
perto quando conclui que "a Otan
subestimou o ditador iugoslavo e
não previu o acirramento da política de limpeza étnica (depois do
início dos ataques aéreos)".
No contexto geral do livro, esses
problemas são, porém, secundários. A descrição do cotidiano da
guerra em Belgrado e Pristina, os
relatos e as opiniões colhidas "in
situ" constituem um material histórico de valor inestimável. E
também único, pois só podiam
ser obtidas naquela hora, naquele
lugar, e quem duvida que era necessária boa dose de coragem para estar nesse lugar, nessa hora?
As famílias divididas pelas opiniões, o medo da espionagem e da
delação, a vontade de depor apesar desse risco, a oposição do povo sérvio à intervenção da Otan
(inclusive daqueles que se opunham a Milosevic), os massacres
provocados pelos bombardeios,
chamados de "erros" ou "danos
colaterais", o drama do(s) povo(s) sem alternativas, dependentes por inteiro de decisões tomadas por cima deles, sem possibilidades imediatas de pressão ou de
controle, a desmoralização de
uma juventude que luta para ficar
e sonha em fugir...
Os mitos caem um a um: "Até
meus 26, 27 anos, eu não sabia o
que era racismo!", diz um sérvio:
o decantado papel do "ódio ancestral" dos povos balcânicos fica
reduzido à sua verdadeira dimensão, não maior, talvez até menor,
da que existe no Brasil entre sulistas e nordestinos, ou na América
do Sul entre chilenos (ou brasileiros) e argentinos. O racismo não é
uma pulsão animal sobrevivente
na natureza humana (aceitá-lo seria subscrever inconscientemente
a teoria hitleriana do gênero humano exposta em "Mein
Kampf"), mas o resultado de uma
situação histórica e política.
A riqueza do contato direto de
Kennedy com o cotidiano do país
em guerra também deve muito ao
fato de ser brasileiro (ou latino-americano). No mundo da mídia
internacional também há cidadãos de primeira e segunda classe.
À imprensa do "Primeiro Mundo" estão garantidos os "lugares
reservados", nos hotéis, nas excursões ao teatro dos acontecimentos, nos meios de transmissão. Aos brasileiros cabe o "jeitinho", baixar a guarda de soldados
ou populares puxando conversa
sobre Carnaval, Ronaldinho, Pelé
(os argentinos fazem o mesmo
com Maradona e o tango). Dificilmente um repórter norte-americano ou europeu poderá escrever
um livro como o de Kennedy.
Kennedy só deixa um mito em
pé: o do "ditador louco" (Milosevic). Que Milosevic seja um ditador, ninguém duvida. Quanto a
louco, ninguém sabe, mas, de
qualquer modo, introduzir a loucura de um indivíduo como fator
de explicação histórica costuma
ocultar mais do que esclarecer (a
suposta loucura "expansionista"
ou "homicida" de Hitler tem sido
um meio de obscurecimento dos
processos históricos reais por trás
da guerra e do Holocausto).
O apoio da população a Milosevic, quando este se recusa a assinar o Tratado de Rambouillet,
proposto pelos EUA -o que leva
ao ataque militar da Otan- que
postula o retalhamento da Iugoslávia e, sobretudo, visa a ocupação militar sine die do país: isto
não é invenção da mídia sérvia.
Os depoimentos colhidos por
Kennedy o deixam claro (que o livro conclua com um depoimento
esperançoso, ou desesperado, em
que a Otan ajude agora a derrubar
Milosevic não demonstra senão o
grau da desmoralização provocado pela derrota: o que teria isso de
"democrático"?).
O repórter se deixou envolver
pelos fatos; a testemunha virou
partícipe, a brutalidade da situação fez tocar e ultrapassar os limites da "objetividade": sem isso,
não há sensibilidade, e sem sensibilidade, não há compreensão.
Bem escrito e com ilustrações impressionantes, "Kosovo, A Guerra
dos Covardes" é um livro imprescindível para compreender a barbárie do mundo em que vivemos.
Osvaldo Coggiola é professor de história
contemporânea da USP, autor de "Imperialismo e Guerra na Iugoslávia" (Editora Xamã,
1999), entre outros.
Avaliação:
Livro: Kosovo - A Guerra dos Covardes
Autor: Kennedy Alencar
Editora: DBA
Quanto: R$ 25 (234 págs.)
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