São Paulo, Quinta-feira, 23 de Dezembro de 1999


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POESIA
CD de Neruda não é pão, mas brioche

CYNARA MENEZES
especial para a Folha


Nadar contra a corrente. É o que parece dizer cada verso lido ou cantado no projeto "Marinero en Tierra", uma homenagem ao poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973) nas vozes de músicos da América do Sul e Espanha.
Ler e escutar poesia? Quem tem tempo para isso? Pois para desfrutar o disco é preciso justamente dar um tempo. Desacelerar. Relaxe e escute: é divertido, é o rap (ritmo e poesia) de volta ao tempo dos trovadores.
Ou não. Os chilenos do grupo Canal Magdalena, por exemplo, fizeram do poema "Soneto 12" pura modernidade, e a sensualidade dos versos de Neruda, publicados em 1960, encaixam surpreendentemente com os scratches e a mesa de DJ ao fundo.
Cada um dos 22 músicos ou grupos que participaram escolheu o poema que iria interpretar segundo o seguinte critério básico: que lhes tocasse profundamente. Muitos, por conta disso, são de amor. Ou é que Pablo Neruda escreveu poemas de amor demais?
A musa, sua terceira e última mulher, Matilde Urrutia, com quem viveu por 24 anos, de 49 até a morte, também comparece, com sua voz orgulhosa e coquete, em um trecho do "Soneto 94", nela inspirado: "Se sofres, meu amor, morrerei outra vez".
A voz de Neruda está lá, milagres da tecnologia -límpida e clara. O poeta, amante dos recitais, percorria seu país e logo outros encantando as platéias com sua leitura peculiar, a voz grave e arrastada.
Pablo Neruda seduz os ouvintes deste CD em dois poemas, um deles dedicado à amada, "Pido Silencio", do livro "Estravagario" (58): "Matilde minha, bem-amada, não quero dormir sem teus olhos,/ não quero ser sem que me mires".
Em "Alturas de Machu Pichu" (50), disseca a paisagem peruana como se o fizera com seus sentimentos sobre a latinidade: "Dá-me a mão desde a profunda/ zona de tua dor disseminada/ Não voltarás do fundo das rochas/ Não voltarás do tempo subterrâneo".
Dois brasileiros, o titã Sergio Britto e Milton Nascimento (em um espanhol bastante precário), também aparecem, ao lado de uma fauna heterodoxa que reúne desde românticos, como Miguel Bosé e Alejandro Sanz, a modernetes da cena hispana, como os colombianos Aterciopelados, e nomes tradicionais, como Joaquín Sabina.
Os desconhecidos -entre nós- surpreendem: talvez o melhor de todo o disco esteja na voz da uruguaia Laura Canoura.
Neruda desejava que a poesia chegasse a ser tão cotidiana e indispensável quanto o pão. Não chegou, mas o tributo é um brioche para alguns afortunados.


Avaliação:    

Disco: Marinero en Tierra - Tributo a Neruda Gravadora: Warner Quanto: R$ 89 (na Saraiva, tel. 0/xx/ 11/870-1770)

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