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CONTARDO CALLIGARIS
Atenção! Opor-se pode fazer mal à saúde
O surgeon general (literalmente,
o cirurgião-chefe) é a suma autoridade médica dos Estados Unidos. Foi ele quem carimbou primeiro os maços de cigarros:
"Atenção! Fumar faz mal...". Suas
declarações ressoam pelo mundo
afora. Se, entre os propósitos para
o ano novo, você anotou: fazer
cooper, beber dois litros de água,
comer muita fibra e tomar antioxidantes, provavelmente foi por
influência, direta ou indireta, do
surgeon general.
Daí (sem ironia) a importância
do relatório que ele acaba de publicar: o primeiro inteiramente
consagrado à saúde mental. Esta
é definida como uma boa performance que resulta em atividades
produtivas, relações satisfatórias,
capacidade de se adaptar às mudanças e de lidar com as adversidades.
Por outro lado, nota-se que, em
1990, nos países desenvolvidos, as
doenças mentais acarretaram
uma perda produtiva inferior só
às doenças cardiovasculares. Calcula-se, por exemplo, que o custo
social de uma depressão grave é
equivalente ao custo de uma cegueira ou de uma paraplegia.
Essa definição funcional da saúde e do custo da doença parece cínica. Mas o surgeon general está
pedindo uma vasta mobilização
de dinheiro e energias para uma
ofensiva contra a doença mental.
É compreensível que ele justifique
esse esforço da maneira mais eficiente.
É urgente agir, segundo o relatório, pois hoje existem estratégias
válidas de tratamento. Nenhum
triunfalismo, mas na maioria dos
casos é possível aliviar o sofrimento e melhorar o desempenho. O relatório afirma também que a melhor estratégia é geralmente uma
combinação de medicação e "intervenções psicossociais" (termo
que engloba desde a assistência
social até as psicoterapias comportamentais, dinâmicas, cognitivas etc.).
Portanto, devemos encorajar
nossos próximos a procurar tratamento desde que eles experimentem sintomas de doença mental.
Saberemos facilmente quando intervir, pois, segundo o relatório,
há uma continuidade entre os
problemas mentais (pelos quais
todos passamos) e a doença mental. Os doentes são nossos semelhantes e essa proximidade de experiências deveria acabar com os
estigmas da doença mental, deixando cada um livre para admitir
seu mal-estar e procurar tratamento sem vergonha.
Em suma: cidadão, mais um esforço e os loucos serão reintegrados e curados! Os doentes agradecem. Nós, terapeutas, também podemos agradecer, pois somos chamados com urgência a trabalhar.
O surgeon general promete fundos para pesquisa, serviços públicos de atendimento etc.
Mas algo me deixa desconfiado.
Vejam só: "Os americanos -escreve o relatório- são inundados
por mensagens que falam do sucesso (na escola, na profissão, na
educação das crianças, nas relações), sem se dar conta de que
uma performance bem-sucedida
tem a saúde mental por fundamento". Não aparece sequer a
suspeita de que essas insistentes
mensagens de sucesso possam ser
responsáveis pelos problemas
mentais dos americanos. Para ser
saudável, basta ter sucesso. O que
impede então que qualquer fracassado seja considerado um
doente mental?
Estudante que leva uma recuperação deve ter problemas mentais.
Desempregado também. Se com
isso eles ficarem nervosos e briguentos, já os problemas se tornariam doença. E se, ao serem tratados por seus próximos como doentes, eles ficassem ainda mais irritados? A sirene da ambulância
poderia vir a ser tão familiar em
nossas ruas quanto o jingle do caminhão do gás.
Lembra a psiquiatria soviética
dos anos 60 e 70? Os dissidentes
eram internados. Os burocratas
afirmavam que as internações
eram médicas, pois quem se opunha ao sistema que -diziam
eles- era o melhor, o menos alienante e o mais justo só poderia ser
doente mental.
Em uma sociedade neoliberal,
não internaríamos quem defendesse um projeto social radical: essa repressão destruiria os pressupostos da democracia. Também
não precisamos: com o fim da
Guerra Fria, os projetos radicais
passaram de moda. É mais fácil
cair fora do que se opor. Por outro
lado, cresceu a certeza (delirante)
de que nosso sistema seja o único
e o melhor segundo a razão. Conclusão: a dissidência em nossa
cultura se apresenta facilmente
como desadaptação e patologia.
Os que dormem na rua embora
haja abrigos disponíveis devem
ser loucos. Mesma coisa para os
que vão trabalhar de graça, ou
quase, para uma ONG. Ou os que
querem proteger tartarugas e golfinhos. Ou os suicidas -que com
seu ato parecem decretar que este
mundo não é o melhor possível.
Ou ainda os criminosos. Todos
são desadaptados, loucos ou louquinhos que devem ser generosamente curados.
Agora, se a filosofia implícita do
relatório chegar aos trópicos, ela
deverá encontrar soluções mais
econômicas do que a custosa combinação de pílulas e boas palavras. E será comum ouvir pelas
ruas da periferia: "Zéééé! Pede a
camisa-de-força emprestada do
seu João que o tio perdeu o emprego de novo. Só um dia ou dois..."
Espírito de Michel Foucault nos
libere!
E-mail:ccalligari@uol.com.br
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