São Paulo, Quinta-feira, 23 de Dezembro de 1999


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CONTARDO CALLIGARIS
Atenção! Opor-se pode fazer mal à saúde

O surgeon general (literalmente, o cirurgião-chefe) é a suma autoridade médica dos Estados Unidos. Foi ele quem carimbou primeiro os maços de cigarros: "Atenção! Fumar faz mal...". Suas declarações ressoam pelo mundo afora. Se, entre os propósitos para o ano novo, você anotou: fazer cooper, beber dois litros de água, comer muita fibra e tomar antioxidantes, provavelmente foi por influência, direta ou indireta, do surgeon general.
Daí (sem ironia) a importância do relatório que ele acaba de publicar: o primeiro inteiramente consagrado à saúde mental. Esta é definida como uma boa performance que resulta em atividades produtivas, relações satisfatórias, capacidade de se adaptar às mudanças e de lidar com as adversidades.
Por outro lado, nota-se que, em 1990, nos países desenvolvidos, as doenças mentais acarretaram uma perda produtiva inferior só às doenças cardiovasculares. Calcula-se, por exemplo, que o custo social de uma depressão grave é equivalente ao custo de uma cegueira ou de uma paraplegia.
Essa definição funcional da saúde e do custo da doença parece cínica. Mas o surgeon general está pedindo uma vasta mobilização de dinheiro e energias para uma ofensiva contra a doença mental. É compreensível que ele justifique esse esforço da maneira mais eficiente.
É urgente agir, segundo o relatório, pois hoje existem estratégias válidas de tratamento. Nenhum triunfalismo, mas na maioria dos casos é possível aliviar o sofrimento e melhorar o desempenho. O relatório afirma também que a melhor estratégia é geralmente uma combinação de medicação e "intervenções psicossociais" (termo que engloba desde a assistência social até as psicoterapias comportamentais, dinâmicas, cognitivas etc.).
Portanto, devemos encorajar nossos próximos a procurar tratamento desde que eles experimentem sintomas de doença mental. Saberemos facilmente quando intervir, pois, segundo o relatório, há uma continuidade entre os problemas mentais (pelos quais todos passamos) e a doença mental. Os doentes são nossos semelhantes e essa proximidade de experiências deveria acabar com os estigmas da doença mental, deixando cada um livre para admitir seu mal-estar e procurar tratamento sem vergonha.
Em suma: cidadão, mais um esforço e os loucos serão reintegrados e curados! Os doentes agradecem. Nós, terapeutas, também podemos agradecer, pois somos chamados com urgência a trabalhar. O surgeon general promete fundos para pesquisa, serviços públicos de atendimento etc.
Mas algo me deixa desconfiado. Vejam só: "Os americanos -escreve o relatório- são inundados por mensagens que falam do sucesso (na escola, na profissão, na educação das crianças, nas relações), sem se dar conta de que uma performance bem-sucedida tem a saúde mental por fundamento". Não aparece sequer a suspeita de que essas insistentes mensagens de sucesso possam ser responsáveis pelos problemas mentais dos americanos. Para ser saudável, basta ter sucesso. O que impede então que qualquer fracassado seja considerado um doente mental?
Estudante que leva uma recuperação deve ter problemas mentais. Desempregado também. Se com isso eles ficarem nervosos e briguentos, já os problemas se tornariam doença. E se, ao serem tratados por seus próximos como doentes, eles ficassem ainda mais irritados? A sirene da ambulância poderia vir a ser tão familiar em nossas ruas quanto o jingle do caminhão do gás.
Lembra a psiquiatria soviética dos anos 60 e 70? Os dissidentes eram internados. Os burocratas afirmavam que as internações eram médicas, pois quem se opunha ao sistema que -diziam eles- era o melhor, o menos alienante e o mais justo só poderia ser doente mental.
Em uma sociedade neoliberal, não internaríamos quem defendesse um projeto social radical: essa repressão destruiria os pressupostos da democracia. Também não precisamos: com o fim da Guerra Fria, os projetos radicais passaram de moda. É mais fácil cair fora do que se opor. Por outro lado, cresceu a certeza (delirante) de que nosso sistema seja o único e o melhor segundo a razão. Conclusão: a dissidência em nossa cultura se apresenta facilmente como desadaptação e patologia.
Os que dormem na rua embora haja abrigos disponíveis devem ser loucos. Mesma coisa para os que vão trabalhar de graça, ou quase, para uma ONG. Ou os que querem proteger tartarugas e golfinhos. Ou os suicidas -que com seu ato parecem decretar que este mundo não é o melhor possível. Ou ainda os criminosos. Todos são desadaptados, loucos ou louquinhos que devem ser generosamente curados.
Agora, se a filosofia implícita do relatório chegar aos trópicos, ela deverá encontrar soluções mais econômicas do que a custosa combinação de pílulas e boas palavras. E será comum ouvir pelas ruas da periferia: "Zéééé! Pede a camisa-de-força emprestada do seu João que o tio perdeu o emprego de novo. Só um dia ou dois..."
Espírito de Michel Foucault nos libere!
E-mail:ccalligari@uol.com.br


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