São Paulo, sábado, 23 de dezembro de 2006

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Luiz Vilela: dois dedos de prosa


Bóris e Dóris compõem a rima desparelhada entre um empresário bem-sucedido e sua mulher mais nova

SEJA QUAL for o canto de sereia da forma breve, a preferência pelo conto na narrativa brasileira contemporânea é marcante e plurideterminada. Haverá no grosso desta enxurrada atual de contistas um tanto de timidez estética (se falho e breve, menos grave), uma incompreensão das dificuldades específicas do gênero (não é pela menor extensão que o conto é mais simples), mas também uma recusa legítima da aspiração à idéia de totalidade, ainda que degradada, que o romance teima em portar. Da fatia de vida à forma aberta, o leque da prosa breve moderna acomoda do conservadorismo extremo à novidade desconcertante.
O ex-jornalista Luiz Vilela até escreveu romances (como "O Inferno É Aqui Mesmo", de 1979, relato à clef de sua passagem pelas redações paulistanas), mas construiu seu nome como novelista e contista do cotidiano cinzento da classe média urbana, mineiramente cético desde "Tremor de Terra", coletânea de contos de sua estréia, aos 24 anos, até "Bóris e Dóris", novela recém-lançada pela Record. Um contista maduro, premiado de outros carnavais, portanto, que não se confunde com esta febre mais recente.
Nas suas variações em torno dos desejos desencontrados (mulheres bovaristas, homens de carreira ou carreiristas, homens do subsolo, solitários, à beira de surtos) e das misérias comezinhas da vida na cidade, Vilela se vale de um narrador dramático. Seu trunfo maior é um ouvido apuradíssimo para os diálogos, ainda que sem o gume do minimalismo cruel de Dalton Trevisan, nem das epifanias saturadas de ironia lírica de Oswald de Andrade.
Nos seus melhores momentos, alcança um trabalho com o osso da língua, uma duplicação do pensamento automático que denuncia o postiço das falas feitas. Mas nem sempre escapa à tentação de enquadrar este sem-sentido em lances de efeito, submetendo-o à solução artificial, explicativa, de um narrador que ainda faz valer sua autoridade final.
Bóris e Dóris compõem a rima desparelhada entre um sexagenário empresário bem-sucedido e sua entediada mulher mais nova durante uma convenção. Uma pergunta de questionário de hotel ("suas expectativas foram atendidas?") é pretexto para revelar os fossos em que cada um vai metido: D: "Nem nos hotéis, nem na vida. É isso o que eu vou responder." B: "Mas não vai entregar o questionário." D: "Não, não vou; eu não entrego. Eu só respondo." B: "Você não acha que isso é uma coisa sem sentido?" D: "Eu gosto das coisas sem sentido." B: "É...Cada doido com sua mania..." D: "Lembra do hotel em que nós ficamos no ano passado?"
O melhor de Vilela está em apanhar com precisão este diálogo de surdos, permeado por um erotismo feito de devaneios solitários. Feitos de ninharias, eles prescindem de explicação, valem por sua naturalidade e estranheza, simultâneas.


BÓRIS E DÓRIS    
Autor:
Luiz Vilela
Editora: Record
Quanto: R$ 20,90 (80 págs.)


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