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FERNANDO GABEIRA
O mundo que começa nos seios da feirante
"O mundo começava nos seios
de Jandira/depois surgiram outras peças da criação". Esses versos de Murilo Mendes talvez pudessem ser adaptados ao caso da
feirante que fez topless no Rio e
atraiu um pelotão da PM para
combater o que os oficiais consideram um ato obsceno.
Vinte anos depois das primeiras
tentativas no Posto 9, em Ipanema, eis que agora os seios da feirante abrem subitamente para o
Brasil o princípio de um novo
mundo, que, apesar de tanta conversa sobre modernização, acabou passando ao largo.
Sinceramente, não hostilizei a
polícia nos comentários que fiz sobre o tema. Ela, na verdade, cumpriu um papel libertador, no sentido de realizar, diante das câmeras, uma repressão que acabaria
abrindo caminho para um consenso em torno do assunto.
Além disso, a polícia nunca foi
preparada para interpretar o que
é chamado de ato obsceno no Código Penal. Nunca ninguém disse
para eles que o papel do observador é muito importante e que, às
vezes, a obscenidade está dentro
da nossa própria cabeça. Eles foram entregues -aliás, todos nós
estamos, de certa maneira- ao
seu próprio inconsciente e, possivelmente, acharam que mulher de
seio de fora atrai estupro.
Não é uma tese estapafúrdia. O
próprio dom Eugênio Sales, na
missa de quinta-feira, afirmou
que os defensores do topless estavam estimulando o estupro, que
havia uma relação direta entre o
que aconteceu na praia e a violência contra mulheres que estavam
numa fila de escola, tentando matricular os filhos, e foram atacadas por estupradores.
É inadequado especular sobre o
inconsciente de policiais, assim
como seria desrespeitoso especular sobre o inconsciente de dom
Eugênio. Ainda mais ele, que me
ajuda sempre nas eleições, pedindo aos fieis que não votem em
mim. Com isso, me dá condições
de me dirigir aos católicos naqueles spots de dez segundos e dizer:
"Dom Eugênio pediu para que você não votasse em mim; ele costuma pedir para você não usar camisinha, logo, não dá para obedecê-lo em tudo..."
Aquele casal na praia, que me
desculpem os policiais e o próprio
dom Eugênio, viveu um momento
histórico. Vê-se que o marido é
um pouco mais velho, mas ainda
é um homem em forma. A polícia
acabou provocando nele uma ira
saudável, que deve ter fortalecido
o afeto do casal e, quem sabe, de
noite no escuro, sem lei e sem polícia, eles tenham se amado intensamente.
De noite no escuro, diria a polícia, tudo é permitido. Mas de dia,
os seios de fora, pontudos ou não,
em forma de pêra ou melão, caídos ou em pé, biônicos ou naturais, estão todos fora da lei. Ai dos
bebês que insistem no choro público. Se as mães os amamentam,
podem ser presas e processadas.
Uma visão mais liberal afirmaria: seios que amamentam não
são obscenos. São seios que trabalham pela continuidade da espécie. O problema são os seios vadios, que se douram ao sol, que se
encrespam com a brisa, que balançam na corrida para o mar.
Esses sim são perigosos, pois trazem uma ligeira notícia do prazer, sugerem que é possível fazer
outras coisas além de procriar.
Ressurge, assim, nosso velho
problema com a Igreja Católica.
Podemos esquecê-lo no momento.
Podemos até achar que a nudez é
amiga do estupro e reescrever a
história do Descobrimento, mostrando como os índios atacaram
os portugueses, seduzidos por suas
roupas pesadas e sensuais.
Já me acostumei com a repressão brasileira e sinto que ela é
muito engraçada quando começa
a desmoronar.
Corremos o risco, uma vez vencida essa etapa, de ver a banda
PM não mais reprimindo as mulheres de topless, mas atacando,
na praia, aquela marchinha:
"Mamãe, eu quero, mamãe, eu
quero mamar". Seria uma boa
maneira de sublimar toda essa fúria do bravo pelotão que atacou a
feirante e seu marido, uma boa
maneira de se conciliar com uma
sensualidade amordaçada pela
visão religiosa. Não acredito tanto
nos lugares-comuns que escrevia
no passado sobre a sexualidade.
Há alguma coisa nessa história
toda que não processei ainda e
que, um dia, talvez possa elaborar
melhor, quando o quadro ficar
mais claro na minha consciência.
Se pudesse dar um palpite à PM
do Rio, depois dessa aventura histórica, no sentido de história cotidiana, diria apenas que é possível
pensar tudo diante da mulher de
seio nu. Ninguém deve se envergonhar do que pensa. O único problema para o qual temos de nos
preparar é a necessidade de não
confundir os pensamentos com o
que está se passando lá fora.
É uma boa tática para evitar
ataques da PM e, se dom Eugênio
me permite essa observação, diria
que também é um bom caminho
para se entender o estupro.
Imagine, cardeal, que o próprio
Vaz de Caminha, ao se referir às
índias, disse: "Nada tinham para
cobrir suas vergonhas, andavam
nuas como chegaram ao mundo".
Daria um bom sermão de domingo: o que ele queria dizer com
suas vergonhas?
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