São Paulo, Segunda-feira, 24 de Janeiro de 2000


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FERNANDO GABEIRA

O mundo que começa nos seios da feirante

"O mundo começava nos seios de Jandira/depois surgiram outras peças da criação". Esses versos de Murilo Mendes talvez pudessem ser adaptados ao caso da feirante que fez topless no Rio e atraiu um pelotão da PM para combater o que os oficiais consideram um ato obsceno.
Vinte anos depois das primeiras tentativas no Posto 9, em Ipanema, eis que agora os seios da feirante abrem subitamente para o Brasil o princípio de um novo mundo, que, apesar de tanta conversa sobre modernização, acabou passando ao largo.
Sinceramente, não hostilizei a polícia nos comentários que fiz sobre o tema. Ela, na verdade, cumpriu um papel libertador, no sentido de realizar, diante das câmeras, uma repressão que acabaria abrindo caminho para um consenso em torno do assunto.
Além disso, a polícia nunca foi preparada para interpretar o que é chamado de ato obsceno no Código Penal. Nunca ninguém disse para eles que o papel do observador é muito importante e que, às vezes, a obscenidade está dentro da nossa própria cabeça. Eles foram entregues -aliás, todos nós estamos, de certa maneira- ao seu próprio inconsciente e, possivelmente, acharam que mulher de seio de fora atrai estupro.
Não é uma tese estapafúrdia. O próprio dom Eugênio Sales, na missa de quinta-feira, afirmou que os defensores do topless estavam estimulando o estupro, que havia uma relação direta entre o que aconteceu na praia e a violência contra mulheres que estavam numa fila de escola, tentando matricular os filhos, e foram atacadas por estupradores.
É inadequado especular sobre o inconsciente de policiais, assim como seria desrespeitoso especular sobre o inconsciente de dom Eugênio. Ainda mais ele, que me ajuda sempre nas eleições, pedindo aos fieis que não votem em mim. Com isso, me dá condições de me dirigir aos católicos naqueles spots de dez segundos e dizer: "Dom Eugênio pediu para que você não votasse em mim; ele costuma pedir para você não usar camisinha, logo, não dá para obedecê-lo em tudo..."
Aquele casal na praia, que me desculpem os policiais e o próprio dom Eugênio, viveu um momento histórico. Vê-se que o marido é um pouco mais velho, mas ainda é um homem em forma. A polícia acabou provocando nele uma ira saudável, que deve ter fortalecido o afeto do casal e, quem sabe, de noite no escuro, sem lei e sem polícia, eles tenham se amado intensamente.
De noite no escuro, diria a polícia, tudo é permitido. Mas de dia, os seios de fora, pontudos ou não, em forma de pêra ou melão, caídos ou em pé, biônicos ou naturais, estão todos fora da lei. Ai dos bebês que insistem no choro público. Se as mães os amamentam, podem ser presas e processadas.
Uma visão mais liberal afirmaria: seios que amamentam não são obscenos. São seios que trabalham pela continuidade da espécie. O problema são os seios vadios, que se douram ao sol, que se encrespam com a brisa, que balançam na corrida para o mar. Esses sim são perigosos, pois trazem uma ligeira notícia do prazer, sugerem que é possível fazer outras coisas além de procriar.
Ressurge, assim, nosso velho problema com a Igreja Católica. Podemos esquecê-lo no momento. Podemos até achar que a nudez é amiga do estupro e reescrever a história do Descobrimento, mostrando como os índios atacaram os portugueses, seduzidos por suas roupas pesadas e sensuais.
Já me acostumei com a repressão brasileira e sinto que ela é muito engraçada quando começa a desmoronar.
Corremos o risco, uma vez vencida essa etapa, de ver a banda PM não mais reprimindo as mulheres de topless, mas atacando, na praia, aquela marchinha: "Mamãe, eu quero, mamãe, eu quero mamar". Seria uma boa maneira de sublimar toda essa fúria do bravo pelotão que atacou a feirante e seu marido, uma boa maneira de se conciliar com uma sensualidade amordaçada pela visão religiosa. Não acredito tanto nos lugares-comuns que escrevia no passado sobre a sexualidade. Há alguma coisa nessa história toda que não processei ainda e que, um dia, talvez possa elaborar melhor, quando o quadro ficar mais claro na minha consciência.
Se pudesse dar um palpite à PM do Rio, depois dessa aventura histórica, no sentido de história cotidiana, diria apenas que é possível pensar tudo diante da mulher de seio nu. Ninguém deve se envergonhar do que pensa. O único problema para o qual temos de nos preparar é a necessidade de não confundir os pensamentos com o que está se passando lá fora.
É uma boa tática para evitar ataques da PM e, se dom Eugênio me permite essa observação, diria que também é um bom caminho para se entender o estupro.
Imagine, cardeal, que o próprio Vaz de Caminha, ao se referir às índias, disse: "Nada tinham para cobrir suas vergonhas, andavam nuas como chegaram ao mundo".
Daria um bom sermão de domingo: o que ele queria dizer com suas vergonhas?



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