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São Paulo, segunda-feira, 24 de fevereiro de 2003

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NELSON ASCHER

Minha janela indiscreta

Transportes coletivos são um mal inevitável: quem goste de estar dentro deles ou é um batedor de carteiras ou alguém muito solitário. O mesmo vale para as passeatas que não apenas se parecem com um ônibus ou metrô exposto às intempéries e movido pelos pés dos participantes como em geral tampouco levam a lugar nenhum.
Minha janela poderia dar para uma praia apinhada de "starlets" praticando topless, mas, dado que Paris fica longe do mar, a melhor vista que consegui é uma avenida que está para as "manifs" assim como Monza ou Mônaco estão para a F-1.
O protesto recente não foi, portanto, o primeiro ao qual assisti de camarote. Acompanhá-lo horas a fio não de seu interior nem pela TV, mas confortavelmente de perto, propicia uma espécie de distanciamento participativo. Depois de meia hora, não há mais como resisitr à compulsão de lhe avaliar as dimensões e o grau de organização ou de tentar julgar, no meio da cacofonia ideológica, quais tendências predominam.
Segundo os jornais, a passeata reuniu 150 mil pessoas. O que vi, num horário entre o almoço devidamente digerido e a primeira sessão noturna de cinema (sem descontar o tempo da condução) nessa tarde ensolarada, mas não quente, de sábado, foi, portanto, uma "manif" mediana.
Fora uns 15% ou 20% de muçulmanos, os manifestantes eram, em sua maioria, gente de classe média e meia-idade, ou seja, aquilo que os americanos chamam de "baby-boomers" e os franceses de "soixante-huitards ménopausés". Seu objetivo resumia-se num monossílabo: "paz".
A marcha poderia ter parecido mais espontânea se as pessoas tivessem deixado em casa as faixas que proclamavam diversas instituições, sindicatos etc. que a organizaram. Protestos espontâneos são raros e, ao contrário daquele, não contam com o encorajamento do governo e da imprensa.
Por breve que seja, "paz" é uma palavra na qual cabe de tudo, inclusive seu antônimo e, uma vez que é mais fácil militar contra do que a favor de algo, o adversário ao qual os manifestantes se opunham eram principalmente, mas não unicamente, os EUA. Na invasão do Iraque que se prepara, os americanos têm como principal aliada a Inglaterra, enquanto outra nação diretamente envolvida nas operações é a Austrália. Diante da ausência quase total de placas e slogans que criticassem esses dois países, seria mais do que compreensível, porém, que um espectador distraído concluísse que a operação teria apoio ativo de Israel.
Pense-se o que se queira a respeito de Ariel Sharon ou do Estado judeu, mas essa é uma guerra da qual os americanos preferem mantê-los afastados e da qual eles mesmos querem distância. Mesmo assim, um em cada quatro ou cinco slogans e placas se referia a Israel e a seu primeiro-ministro, algo que dá o que pensar. Que as palavras-de-ordem favoritas -"Busharon assassin"- não fossem de uso exclusivo dos muçulmanos torna tal obsessão tão intrigante -ou talvez óbvia- quanto seria ouvir os Gaviões da Fiel berrando "morte aos palmeirenses e aos barbeiros".
Passada a procissão, digo, a passeata, foi como se ela nunca tivesse ocorrido. Se excluirmos alguns minutos do noticiário televisivo e algumas fotos nos jornais do dia seguinte, para que terá servido toda essa azáfama?
Manifestações como as que houve nas últimas décadas em Budapeste, Praga, Gdansk, Berlim, Leipzig, Belgrado ou a de Tian An Men foram acontecimentos políticos indiscutivelmente importantes, pois não se resumiram a passeios tranquilos nas horas de lazer. Nesses casos, as pessoas saíram às ruas, enfrentando policiais, tropas de choque, não raro tanques, para, permanecendo por lá ou voltando dia após dia, desafiarem seus governos e reivindicarem mudanças profundas em suas próprias sociedades.
O que teve lugar em Paris, Londres, Roma foi diferente.
O apego às abstrações, aos princípios inegociáveis e às utopias irrealizáveis, associado a um desdém soberano pela realidade pragmática, o voluntarismo e o romantismo revolucionário, excessos teóricos e retóricos, a crença de que todos os problemas do mundo, causados, sem dúvida, pelo cinismo e pela cobiça, são imediatamente resolúveis, pois quem sabe faz a hora, não espera acontecer, eis as marcas registradas do movimento estudantil em qualquer parte do planeta, exceto, diga-se de passagem, onde há ditaduras e tiranias de verdade.
Tais características decorrem da falta de poder e da consequente irresponsabilidade que definem tanto os estudantes como os jovens em geral. "Basta de tomar o elevador: tomemos o poder" ou "Sejamos realistas, exijamos o impossível" são slogans do maio de 68 na França que falam por si mesmos. Quem sabe que não vai conseguir nada pode querer tudo. O curioso é que, pelo menos em termos etários, os integrantes da passeata em questão eram adultos. Seja como for, que diferença fazem 150 mil manifestantes parisienses que não votam nas eleições norte-americanas ? Que são eles, senão exibicionistas ostentando ao mundo e/ou a si mesmos suas boas intenções, suas virtudes transbordantes?
As "manifs" pró-palestinas do ano passado, cujas dimensões eram semelhantes, não interromperam a operação Escudo Defensivo executada por um país menor, mais pobre e muito mais impopular do que os EUA. Os protestos seguintes minguaram de tal maneira que, poucos meses depois, não atraíam mais que 1.500 militantes profissionais. Será que os participantes da recente passeata acreditam que terão algum sucesso agora contra a "hiperpotência" hegemônica? Não é de todo improvável que creiam nisso, pois seu teatro narcisista nada mais foi do que uma prova da infantilização da rua européia.


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