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NELSON ASCHER
Minha janela indiscreta
Transportes coletivos são
um mal inevitável: quem
goste de estar dentro deles ou é
um batedor de carteiras ou alguém muito solitário. O mesmo
vale para as passeatas que não
apenas se parecem com um ônibus ou metrô exposto às intempéries e movido pelos pés dos participantes como em geral tampouco levam a lugar nenhum.
Minha janela poderia dar para
uma praia apinhada de "starlets"
praticando topless, mas, dado que
Paris fica longe do mar, a melhor
vista que consegui é uma avenida
que está para as "manifs" assim
como Monza ou Mônaco estão
para a F-1.
O protesto recente não foi, portanto, o primeiro ao qual assisti
de camarote. Acompanhá-lo horas a fio não de seu interior nem
pela TV, mas confortavelmente
de perto, propicia uma espécie de
distanciamento participativo.
Depois de meia hora, não há mais
como resisitr à compulsão de lhe
avaliar as dimensões e o grau de
organização ou de tentar julgar,
no meio da cacofonia ideológica,
quais tendências predominam.
Segundo os jornais, a passeata
reuniu 150 mil pessoas. O que vi,
num horário entre o almoço devidamente digerido e a primeira
sessão noturna de cinema (sem
descontar o tempo da condução)
nessa tarde ensolarada, mas não
quente, de sábado, foi, portanto,
uma "manif" mediana.
Fora uns 15% ou 20% de muçulmanos, os manifestantes eram,
em sua maioria, gente de classe
média e meia-idade, ou seja,
aquilo que os americanos chamam de "baby-boomers" e os
franceses de "soixante-huitards
ménopausés". Seu objetivo resumia-se num monossílabo: "paz".
A marcha poderia ter parecido
mais espontânea se as pessoas tivessem deixado em casa as faixas
que proclamavam diversas instituições, sindicatos etc. que a organizaram. Protestos espontâneos
são raros e, ao contrário daquele,
não contam com o encorajamento do governo e da imprensa.
Por breve que seja, "paz" é uma
palavra na qual cabe de tudo, inclusive seu antônimo e, uma vez
que é mais fácil militar contra do
que a favor de algo, o adversário
ao qual os manifestantes se opunham eram principalmente, mas
não unicamente, os EUA. Na invasão do Iraque que se prepara,
os americanos têm como principal aliada a Inglaterra, enquanto
outra nação diretamente envolvida nas operações é a Austrália.
Diante da ausência quase total de
placas e slogans que criticassem
esses dois países, seria mais do
que compreensível, porém, que
um espectador distraído concluísse que a operação teria apoio ativo de Israel.
Pense-se o que se queira a respeito de Ariel Sharon ou do Estado judeu, mas essa é uma guerra
da qual os americanos preferem
mantê-los afastados e da qual eles
mesmos querem distância. Mesmo assim, um em cada quatro ou
cinco slogans e placas se referia a
Israel e a seu primeiro-ministro,
algo que dá o que pensar. Que as
palavras-de-ordem favoritas
-"Busharon assassin"- não
fossem de uso exclusivo dos muçulmanos torna tal obsessão tão
intrigante -ou talvez óbvia-
quanto seria ouvir os Gaviões da
Fiel berrando "morte aos palmeirenses e aos barbeiros".
Passada a procissão, digo, a
passeata, foi como se ela nunca tivesse ocorrido. Se excluirmos alguns minutos do noticiário televisivo e algumas fotos nos jornais
do dia seguinte, para que terá servido toda essa azáfama?
Manifestações como as que
houve nas últimas décadas em
Budapeste, Praga, Gdansk, Berlim, Leipzig, Belgrado ou a de
Tian An Men foram acontecimentos políticos indiscutivelmente importantes, pois não se resumiram a passeios tranquilos nas
horas de lazer. Nesses casos, as
pessoas saíram às ruas, enfrentando policiais, tropas de choque,
não raro tanques, para, permanecendo por lá ou voltando dia após
dia, desafiarem seus governos e
reivindicarem mudanças profundas em suas próprias sociedades.
O que teve lugar em Paris, Londres, Roma foi diferente.
O apego às abstrações, aos princípios inegociáveis e às utopias irrealizáveis, associado a um desdém soberano pela realidade
pragmática, o voluntarismo e o
romantismo revolucionário, excessos teóricos e retóricos, a crença de que todos os problemas do
mundo, causados, sem dúvida,
pelo cinismo e pela cobiça, são
imediatamente resolúveis, pois
quem sabe faz a hora, não espera
acontecer, eis as marcas registradas do movimento estudantil em
qualquer parte do planeta, exceto, diga-se de passagem, onde há
ditaduras e tiranias de verdade.
Tais características decorrem
da falta de poder e da consequente irresponsabilidade que definem tanto os estudantes como os
jovens em geral. "Basta de tomar
o elevador: tomemos o poder" ou
"Sejamos realistas, exijamos o
impossível" são slogans do maio
de 68 na França que falam por si
mesmos. Quem sabe que não vai
conseguir nada pode querer tudo.
O curioso é que, pelo menos em
termos etários, os integrantes da
passeata em questão eram adultos. Seja como for, que diferença
fazem 150 mil manifestantes parisienses que não votam nas eleições norte-americanas ? Que são
eles, senão exibicionistas ostentando ao mundo e/ou a si mesmos
suas boas intenções, suas virtudes
transbordantes?
As "manifs" pró-palestinas do
ano passado, cujas dimensões
eram semelhantes, não interromperam a operação Escudo Defensivo executada por um país menor, mais pobre e muito mais impopular do que os EUA. Os protestos seguintes minguaram de tal
maneira que, poucos meses depois, não atraíam mais que 1.500
militantes profissionais. Será que
os participantes da recente passeata acreditam que terão algum
sucesso agora contra a "hiperpotência" hegemônica? Não é de todo improvável que creiam nisso,
pois seu teatro narcisista nada
mais foi do que uma prova da infantilização da rua européia.
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