São Paulo, sexta-feira, 24 de março de 2000


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GASTRONOMIA
Bolos e inseticidas com garantia absoluta

NINA HORTA
Colunista da Folha

Quando morrem velhas avós, mães, tias, quando se desencantam baús, sou automaticamente eleita a herdeira dos espólios culinários. Entre o toque da campainha e o ciao, vão-se cinco minutos. A carga despejada na sala alivia a amiga de um peso inútil de receitas amareladas, cadernos apagados, recortes de uma outra geração.
Eu gosto da velharia, só que me falta tempo para ler e lugar para guardar. Escolho ao léu uma ou outra receita, todos os cadernos, alguns livretos e levo adiante o funeral longe dos olhos das doadoras. É um modo piedoso de deixar as amigas com boa consciência imaginando que as ascendentes femininas não trabalharam em vão, que, na minha casa, as gelatinas, pudins continuarão recriados, úmidos e "tremblantes", que os queques e bolos do Império sairão do forno luminosos de gemas. O tempo, assim, será de algum modo reencontrado e revivido.
Com o passar dos anos, arrependo-me de muita coisa que foi parar no lixo, e o que guardei torna-se cada vez mais interessante.
Hoje separei alguns folhetos. A maioria não tem data, a maioria faz propaganda de fermento Royal e outras marcas menos conhecidas. E fico a pensar na infinidade de pães e bolos baixos e embatumados antes da chegada desse verdadeiro Viagra dos suflês falidos, das broas esparramadas, das sobremesas rentes ao prato.
Um dos folhetos, primoroso, tem na capa uma mulher esguia, de pijama de seda largo, chinelinho de salto, nas costas uma manta verde forrada de rosa, um rosa seco, quase o mesmo da poltrona onde está reclinada. Ela lê. Ao seu lado, uma mesa de chá com bule, leiteira e caneca de bom design. Parece saída de um ambiente inglês, com móveis da Omega, o que é desmentido pelo mar e a praia forrada de palmeiras que se pode ver no fundo, pela janela.
É uma cabocla inglesa, com certeza, que se preocupou muito com a decoração da casa. O chão é preto, as paredes de um azul desbotado e fosco, as cortinas listradas e com flores, só um vaso moderno com uma bromélia.
O que lê a mulher? "O Que as Donas de Casa Devem Saber", Rio de Janeiro, setembro de 1933, com os cumprimentos da Anglo-Mexican Petroleum Co. Ltda. O folheto ensina, primeiro, noções de limpeza de luvas, escovas, tapetes, camurça. Depois vem a preocupação com a cútis seca e oleosa e com os cuidados a se tomar com a dita cútis e os efeitos do sol. O remédio sugerido contra o sol é uma mistura de água sulfurada, suco de limão e água de cinamon (sic). Água de cinamon ainda vai, mas suco de limão... Depois do sol, talvez.
Começam as receitas. Quais as comidas a serem feitas pela jovem matrona, ociosa e lânguida? Doces. Mães bentas, bolo simples, geléia de mering (sic), sonhos, pãezinhos para o chá, panquecas com geléia. Tudo com pó Royal, em negrito.
As receitas, com certeza, foram adaptadas de um outro folhetinho inglês, mas a mensagem verdadeira, a desculpa para o folheto, é fazer com que a moça de cabelo partido ao meio se interesse por Shell Tox de "effeito fatal a todos os insetos, de qualquer tamanho, aos seus ovos e larvas".
Na última página, a senhorinha já se levantou, animadíssima e risonha vestiu-se com uma saia godê e blusa de gola de arminho e está a segundos de sair e comprar um jogo Shell Tox composto e uma lata de inseticida e o pulverizador, um depósito cilíndrico com tampinha e um pistão que vai e volta manualmente, aspergindo o líquido.
Meu Deus, "le temps retrouvé" não por meio dos bombocados, mas com a imagem muito mais agressiva do Shell Tox, o cheiro invasor, as gotas escorrendo na bomba de inseticida, fuct, fuct, permeando a cozinha sobre os pães de mel "onde geralmente as moscas e baratas se aglomeram. E, para ter plena certeza de que está adquirindo o genuíno Shell Tox, exija a lata com o Homem Vermelho, sua garantia absoluta".
Roda, roda, roda, dá tudo no mesmo, ô chente...
E-mail: ninahort@uol.com.br


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