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GASTRONOMIA
Bolos e inseticidas com garantia absoluta
NINA HORTA
Colunista da Folha
Quando morrem velhas avós,
mães, tias, quando se desencantam baús, sou automaticamente
eleita a herdeira dos espólios culinários. Entre o toque da campainha e o ciao, vão-se cinco minutos. A carga despejada na sala alivia a amiga de um peso inútil de
receitas amareladas, cadernos
apagados, recortes de uma outra
geração.
Eu gosto da velharia, só que me
falta tempo para ler e lugar para
guardar. Escolho ao léu uma ou
outra receita, todos os cadernos,
alguns livretos e levo adiante o funeral longe dos olhos das doadoras. É um modo piedoso de deixar
as amigas com boa consciência
imaginando que as ascendentes
femininas não trabalharam em
vão, que, na minha casa, as gelatinas, pudins continuarão recriados, úmidos e "tremblantes", que
os queques e bolos do Império
sairão do forno luminosos de
gemas. O tempo, assim, será
de algum modo reencontrado
e revivido.
Com o passar dos anos, arrependo-me de muita coisa
que foi parar no lixo, e o
que guardei torna-se cada
vez mais interessante.
Hoje separei alguns folhetos. A maioria não tem
data, a maioria faz propaganda de fermento Royal
e outras marcas menos conhecidas. E fico a pensar
na infinidade de pães e
bolos baixos e embatumados antes da chegada
desse verdadeiro Viagra
dos suflês falidos, das
broas esparramadas,
das sobremesas rentes
ao prato.
Um dos folhetos, primoroso, tem na capa uma mulher
esguia, de pijama de seda largo,
chinelinho de salto, nas costas
uma manta verde forrada de rosa, um rosa seco, quase o mesmo
da poltrona onde está reclinada. Ela lê. Ao seu lado, uma
mesa de chá com bule, leiteira e caneca de bom
design. Parece saída
de um ambiente
inglês, com
móveis da Omega, o que é desmentido pelo mar e a praia forrada de palmeiras que se pode ver
no fundo, pela janela.
É uma cabocla inglesa, com certeza, que se preocupou muito com
a decoração da casa. O chão é
preto, as paredes de um azul desbotado e fosco, as cortinas listradas e com flores, só um vaso moderno com uma bromélia.
O que lê a mulher? "O Que as
Donas de Casa Devem Saber",
Rio de Janeiro, setembro de 1933,
com os cumprimentos da Anglo-Mexican Petroleum Co. Ltda. O
folheto ensina, primeiro, noções
de limpeza de luvas, escovas,
tapetes, camurça. Depois vem
a preocupação com a cútis
seca e oleosa e com
os cuidados a se
tomar com a dita cútis e os efeitos do sol. O remédio sugerido
contra o sol é
uma mistura
de água
sulfurada,
suco de limão e água de cinamon
(sic). Água de cinamon ainda vai,
mas suco de limão... Depois do
sol, talvez.
Começam as receitas. Quais as
comidas a serem feitas pela jovem
matrona, ociosa e lânguida? Doces. Mães bentas, bolo simples, geléia de mering (sic), sonhos, pãezinhos para o chá, panquecas
com geléia. Tudo com pó Royal,
em negrito.
As receitas, com certeza, foram
adaptadas de um outro folhetinho inglês, mas a mensagem verdadeira, a desculpa para o folheto, é fazer com que a moça de cabelo partido ao meio se interesse
por Shell Tox de "effeito fatal a todos os insetos, de qualquer tamanho, aos seus ovos e larvas".
Na última página, a senhorinha
já se levantou, animadíssima e risonha vestiu-se com uma saia godê e blusa de gola de arminho e
está a segundos de sair e comprar
um jogo Shell Tox composto e
uma lata de inseticida e o pulverizador, um depósito cilíndrico com
tampinha e um pistão que vai e
volta manualmente, aspergindo
o líquido.
Meu Deus, "le temps retrouvé" não por meio dos bombocados, mas com a imagem
muito mais agressiva do Shell
Tox, o cheiro invasor, as gotas escorrendo na bomba de inseticida,
fuct, fuct, permeando a cozinha
sobre os pães de mel "onde geralmente as moscas e baratas se
aglomeram. E, para ter plena certeza de que está adquirindo o genuíno Shell Tox, exija a lata
com o Homem Vermelho, sua
garantia absoluta".
Roda, roda, roda,
dá tudo no mesmo, ô
chente...
E-mail: ninahort@uol.com.br
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