São Paulo, sexta-feira, 24 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY
A história não pede nem merece perdão

No geral, compreendo e até mesmo aprecio os pronunciamentos e as atitudes de João Paulo 2º, que encara sua missão como um compromisso impessoal, tendo recebido um legado complexo, de 2.000 anos, ao qual deve não apenas a dedicação que levou muitos de seus antecessores ao martírio, mas a fidelidade acima de qualquer outro valor.
Contudo, nessa mania de pedir perdão pelos erros e pelas ambiguidades de uma instituição que sobrevive há 20 séculos, atravessando a história quase sempre como protagonista, acho que há um exagero de correção política. Além de inútil, me parece insincero -para não dizer oportunista.
Em artigo recente, Otavio Frias Filho comentou o assunto e colocou a questão no ponto exato: ""Não faz sentido aplicar parâmetros morais de hoje a homens imersos em outra cultura, na qual conduta diversa seria impensável". Bem verdade que o artigo ""Mil perdões" (Folha de 9 de março deste ano) se refere à CNBB, que reconhece os erros e as ambiguidades do processo de nossa colonização. Não chega ao papa. Mas as duas atitudes se conjugam.
Errar é humano -ensinaram os latinos. E a igreja nada mais é do que a face humana de uma mensagem aceita como divina pelos seus seguidores. Ela própria, igreja, sempre assumiu este caráter humano, sujeito aos mil acidentes da carne e do tempo -que condicionam as manifestações do homem, tanto no campo pessoal como no coletivo.
Que ela cometeu erros e continuará cometendo outros é decorrência desse caráter contingente. Quando Pio 9º proclamou o dogma da infalibilidade pontifícia, dogma que até hoje não é bem compreendido por grande número de católicos, deixou claro que essa infalibilidade não se referia às questões científicas, sociais ou filosóficas, mas apenas àquelas decorrentes dos artigos de fé.
Um pronunciamento do papa sobre a natureza da Santíssima Trindade, por exemplo, deve ser considerado infalível pelos católicos, pois ele conta com a inspiração do Espírito Santo. Dizer que a Terra é quadrada ou que existe vida em outros planetas escapa dessa conceituação. Em ciência e nas artes, tanto o papa como a igreja em geral são falíveis como qualquer outro indivíduo ou instituição.
No que diz respeito aos erros e até mesmo aos crimes do passado da igreja, devemos reprová-los -e a própria igreja é a primeira a lamentá-los. Mas a escala moral e política da humanidade não é estática, movimenta-se no leito da história com idas e vindas. Erro inarredável não da igreja em si, mas da humanidade como um todo, é considerar como perfeito um determinado momento da história. Cada geração julgou-se o estágio mais avançado da evolução humana.
Nem mesmo nos campos antropológico e biológico essa consideração é correta. Já tivemos rabo e pêlos em demasia. A continuarmos na face da Terra, talvez percamos os dedos dos pés e as unhas -por inúteis. O que dizer então dos nossos penduricalhos políticos e morais?
A leitura do Velho Testamento, base do novo e pedra sobre qual se assenta a mensagem cristã, é o primeiro e mais confiável relato dos primórdios da raça humana, em que pese a inseparável preocupação moral dos judeus, um povo ainda primitivo e subjugado por conquistadores sucessivos. Guerras, assassinatos, delações, crueldades contra os inimigos, incestos, prevaricações, idolatrias -é extenso e variado o cardápio bíblico.
Tomemos o caso de Abraão, que deu início à era dos patriarcas e é considerado, por judeus, cristãos e muçulmanos, o pai dos crentes. Em seu "Dicionário Filosófico", Voltaire consagrou-lhe uma página irônica. Abraão deixou a Caldéia para evitar o culto a deuses pagãos, peregrinou durante anos pelos desertos, mantendo a unidade de seu povo em torno de um Deus único.
Para ser bem recebido pelas tribos que viviam em Cades, na Judéia, no Hebron, ele apresentava sua mulher Sara como irmã, oferecendo-a aos barbudos reis do deserto. E, quando partia, em sua condição de nômade, recebia desses reis uma grande quantidade de camelos, jumentos, servos e queijos. Diz Voltaire que, ao fim de seus dias, Abraão era o homem que, na época, possuía o maior número de camelos, jumentos, servos e queijos.
Analisando o comportamento de Abraão pela moral de hoje, seríamos obrigados a considerar o pai dos crentes como um cafetão vulgar. Seus descendentes (judeus, cristãos e muçulmanos) nem se preocupam em justificar o procedimento do primeiro e mais importante patriarca.
O exemplo pode parecer marginal, sem relação com a matança de nossos índios ou com as fogueiras da Inquisição. Serve apenas para mostrar quão cambiantes são os valores morais e científicos da humanidade, em nome dos quais tantos e tamanhos crimes foram cometidos. E, à lembrança deles, devemos não apenas lamentá-los, mas tê-los presentes em nossa consciência para não repeti-los.


Texto Anterior: Cultura não é prioridade, diz prefeito
Próximo Texto: 9º Festival de Teatro de Curitiba: Vida e arte de palhaços em crise
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.