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CARLOS HEITOR CONY
A história não pede nem merece perdão
No geral, compreendo e até mesmo aprecio os pronunciamentos e
as atitudes de João Paulo 2º, que
encara sua missão como um compromisso impessoal, tendo recebido um legado complexo, de 2.000
anos, ao qual deve não apenas a
dedicação que levou muitos de
seus antecessores ao martírio,
mas a fidelidade acima de qualquer outro valor.
Contudo, nessa mania de pedir
perdão pelos erros e pelas ambiguidades de uma instituição que
sobrevive há 20 séculos, atravessando a história quase sempre como protagonista, acho que há um
exagero de correção política.
Além de inútil, me parece insincero -para não dizer oportunista.
Em artigo recente, Otavio Frias
Filho comentou o assunto e colocou a questão no ponto exato:
""Não faz sentido aplicar parâmetros morais de hoje a homens
imersos em outra cultura, na qual
conduta diversa seria impensável". Bem verdade que o artigo
""Mil perdões" (Folha de 9 de
março deste ano) se refere à
CNBB, que reconhece os erros e as
ambiguidades do processo de nossa colonização. Não chega ao papa. Mas as duas atitudes se conjugam.
Errar é humano -ensinaram
os latinos. E a igreja nada mais é
do que a face humana de uma
mensagem aceita como divina pelos seus seguidores. Ela própria,
igreja, sempre assumiu este caráter humano, sujeito aos mil acidentes da carne e do tempo -que
condicionam as manifestações do
homem, tanto no campo pessoal
como no coletivo.
Que ela cometeu erros e continuará cometendo outros é decorrência desse caráter contingente.
Quando Pio 9º proclamou o dogma da infalibilidade pontifícia,
dogma que até hoje não é bem
compreendido por grande número de católicos, deixou claro que
essa infalibilidade não se referia
às questões científicas, sociais ou
filosóficas, mas apenas àquelas
decorrentes dos artigos de fé.
Um pronunciamento do papa
sobre a natureza da Santíssima
Trindade, por exemplo, deve ser
considerado infalível pelos católicos, pois ele conta com a inspiração do Espírito Santo. Dizer que a
Terra é quadrada ou que existe
vida em outros planetas escapa
dessa conceituação. Em ciência e
nas artes, tanto o papa como a
igreja em geral são falíveis como
qualquer outro indivíduo ou instituição.
No que diz respeito aos erros e
até mesmo aos crimes do passado
da igreja, devemos reprová-los
-e a própria igreja é a primeira a
lamentá-los. Mas a escala moral e
política da humanidade não é estática, movimenta-se no leito da
história com idas e vindas. Erro
inarredável não da igreja em si,
mas da humanidade como um todo, é considerar como perfeito um
determinado momento da história. Cada geração julgou-se o estágio mais avançado da evolução
humana.
Nem mesmo nos campos antropológico e biológico essa consideração é correta. Já tivemos rabo e
pêlos em demasia. A continuarmos na face da Terra, talvez percamos os dedos dos pés e as unhas
-por inúteis. O que dizer então
dos nossos penduricalhos políticos
e morais?
A leitura do Velho Testamento,
base do novo e pedra sobre qual se
assenta a mensagem cristã, é o
primeiro e mais confiável relato
dos primórdios da raça humana,
em que pese a inseparável preocupação moral dos judeus, um povo
ainda primitivo e subjugado por
conquistadores sucessivos. Guerras, assassinatos, delações, crueldades contra os inimigos, incestos,
prevaricações, idolatrias -é extenso e variado o cardápio bíblico.
Tomemos o caso de Abraão, que
deu início à era dos patriarcas e é
considerado, por judeus, cristãos e
muçulmanos, o pai dos crentes.
Em seu "Dicionário Filosófico",
Voltaire consagrou-lhe uma página irônica. Abraão deixou a Caldéia para evitar o culto a deuses
pagãos, peregrinou durante anos
pelos desertos, mantendo a unidade de seu povo em torno de um
Deus único.
Para ser bem recebido pelas tribos que viviam em Cades, na Judéia, no Hebron, ele apresentava
sua mulher Sara como irmã, oferecendo-a aos barbudos reis do
deserto. E, quando partia, em sua
condição de nômade, recebia desses reis uma grande quantidade
de camelos, jumentos, servos e
queijos. Diz Voltaire que, ao fim
de seus dias, Abraão era o homem
que, na época, possuía o maior
número de camelos, jumentos,
servos e queijos.
Analisando o comportamento
de Abraão pela moral de hoje, seríamos obrigados a considerar o
pai dos crentes como um cafetão
vulgar. Seus descendentes (judeus,
cristãos e muçulmanos) nem se
preocupam em justificar o procedimento do primeiro e mais importante patriarca.
O exemplo pode parecer marginal, sem relação com a matança
de nossos índios ou com as fogueiras da Inquisição. Serve apenas
para mostrar quão cambiantes
são os valores morais e científicos
da humanidade, em nome dos
quais tantos e tamanhos crimes
foram cometidos. E, à lembrança
deles, devemos não apenas lamentá-los, mas tê-los presentes
em nossa consciência para não repeti-los.
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