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Dias Gomes se move entre arte e política em autobiografia
CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local
O título acaba sendo bem apropriado, mesmo se afetado pela
modéstia. "Apenas um Subversivo", frase usada por Carlos Lacerda, em 1965, para descrever a atuação "artística" de Dias Gomes,
acaba se apegando a um adjetivo
"político".
E foi sempre assim. Teatro e política deram o tom à vida e, agora,
às lembranças do dramaturgo, explicitadas nas 416 páginas dessa
sua autobiografia, em que trata
ainda, sempre com muito humor,
de temas como sexo, Deus, morte
e intolerância.
Folha - Não é pessimismo de sua
parte iniciar a sua autobiografia
com uma imagem de morte?
Dias Gomes - Eu busquei a imagem mais antiga que eu tinha na
minha memória.
Eu nunca me dispus, apesar dos
convites das editoras, a escrever
uma autobiografia. Eu achava que
a minha memória era seletiva, e o
caráter dessa seleção eu nunca entendi. Eu achava que eu nunca poderia escrever um livro de memórias porque a minha memória
sempre iria me trair.
Um dia, como exercício literário,
comecei a testá-la e comecei pelas
imagens mais antigas. Fui escrevendo e vi que eu estava fazendo
uma injustiça com a minha memória. Me empolguei e fui até o
fim. Foi um livro escrito sem nenhuma planificação. É uma narrativa espontânea.
Folha - Você encerra o primeiro
capítulo dizendo que tinha um caso mal resolvido com Deus. Ele foi
esclarecido?
Gomes - O fato de eu ter frequentemente tratado de problemas religiosos mostra que o caso
estava mesmo mal resolvido. Mas
eu me tornei agnóstico depois de
uma crise existencial. Hoje não nego nem afirmo a existência de
Deus, mas ignorar o problema é
impossível.
Mas o fato de eu ser agnóstico
não me impede de tratar de temas
religiosos, como foi em "O Santo
Inquérito", embora ali era só um
pretexto para denunciar as arbitrariedades e a violência da ditadura militar. É uma metáfora. Eu não
estou tratando da inquisição, mas
do regime militar. Eu não estou
tratando de um problema religioso, mas de um problema de liberdade, que é também o tema central
de "O Pagador de Promessa".
Você não pode ter a pretensão de
fazer um depoimento da nossa
realidade e excluir a Igreja Católica. Sempre tem um padre na vida
da gente. Quando você nasce tem
um padre para lhe batizar. Quando
você casa tem outro. No elenco
que envolve a nossa vida sempre
tem um padre.
"O Pagador de Promessa" não é
uma peça contra a Igreja Católica,
mas contra a intolerância. Ali tem
um padre, mas poderia ser um general.
Folha - O uso de temas insólitos e
surreais em sua produção, como
em "Saramandaia" e "O Bem-Amado", é um gosto pelo realismo fantástico ou são lembranças transformadas de sua infância?
Gomes - Isso vem do entendimento de que é impossível tratar
de um país como o Brasil sem a conotação do absurdo. Nós somos
um país onde o absurdo faz parte
do cotidiano. É impossível você
questionar ou fazer uma reflexão
sobre o Brasil de uma maneira estritamente realista.
Em "O Bem-Amado", o Odorico quer construir um cemitério
onde não morre ninguém. Em
"Saramambaia", essa conotação
toma conta de toda a novela.
Folha - Qual foi o caso de censura
a peça sua que mais lhe abalou?
Gomes - A minha primeira peça, "O Pé-de-Cabra", foi proibida
e só foi apresentada depois de vários cortes. Depois houve o caso
famoso de "O Berço do Herói",
que foi proibida pelo Carlos Lacerda. A mesma peça eu adaptei para
a TV como "Roque Santeiro",
que também foi proibida. Foram
casos traumatizantes.
Folha - Você abre o livro falando
da morte de seu pai e a morte é
uma presença muito constante no
livro...
Gomes - Aliás, agora me dei
conta que começo falando de morte e termino falando de morte (risos). A vida é um contínuo perder.
Perde-se a mãe, perde-se o irmão,
perde-se os cabelos, os dentes.
Folha - E você tem medo de morrer?
Gomes - Eu tinha um pressentimento que iria morrer cedo quando eu tinha uns 17 anos, na época
em que tive uma crise existencial,
me tornei agnóstico, neguei
Deus... Era uma coisa meio romântica, um pressentimento que
eu não teria muito tempo. Eu escrevia compulsivamente pois
achava que não teria tempo de deixar uma obra. Mas eu passei dos 30
e esqueci a morte.
A única coisa que eu acho uma
grande sacanagem de Deus é a velhice. Eu tenho muito medo de ficar velho. Resisto bravamente à
velhice.
Folha - Você disse tudo em sua
autobiografia?
Gomes - Disse tudo aquilo que
eu queria contar. Fiz um livro com
a preocupação de que não fosse
um calhamaço, que as pessoas pudessem ler em um fim-de-semana,
por exemplo. Até cortei umas 60
páginas, enxuguei-o. Houve sim
uma seleção de fatos que eu julgava, no mínimo, curiosos. Sempre
escrevi pensando no público. Se eu
achava que não teria interesse, eu
cortava.
Folha - Você começa a tratar
mais diretamente de televisão na
página 255 e como algo que você
não pôde evitar em sua carreira.
Se você pudesse evitá-la, você escreveria apenas para teatro?
Gomes - Eu não tenho preconceito algum contra a televisão. Se
tivesse, não teria escrito. Mas se eu
tivesse que escolher, passaria a vida toda escrevendo para teatro.
Mas isso foi uma coisa impossível.
No momento em que eu fui para
a televisão, quase todas as minhas
peças estavam proibidas no Brasil.
Viver de teatro era praticamente
impossível. Essa razão econômica
realmente influenciou minha ida
para a Globo.
Mas também exixtiu no momento a reflexão que, pelas minhas
convicções políticas, pela maneira
de pensar minha profissão, seria
incoerente eu recusar essa proposta de uma platéia gigantesca.
Eu achava que era uma incoerência eu recusar um meio de expressão popular, já que toda a minha
geração sonhou com o teatro popular. A televisão me oferecia a
platéia popular com a qual sonhamos.
Folha - As suas posturas políticas
nunca lhe trouxeram problemas
na Rede Globo? Você se sentia à
vontade sendo um comunista em
uma emissora sempre alinhada
com o poder?
Gomes - Eu me sentia à vontade
primeiro porque ninguém mudou
uma vírgula em meus textos e nem
me disse o que escrever. Nenhum
texto foi alterado pela Globo, apenas pela censura, que era o grande
problema. Várias vezes a censura
pediu a minha cabeça e de outros
comunistas, mas a Globo nunca
deu. A emissora sempre me prestigiou e por isso eu estou nela até
hoje.
Livro: Apenas um Subversivo -
Autobiografia
Autor: Dias Gomes
Lançamento: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 32 (416 páginas)
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