São Paulo, sexta, 24 de abril de 1998

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Dias Gomes se move entre arte e política em autobiografia

CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local

O título acaba sendo bem apropriado, mesmo se afetado pela modéstia. "Apenas um Subversivo", frase usada por Carlos Lacerda, em 1965, para descrever a atuação "artística" de Dias Gomes, acaba se apegando a um adjetivo "político".
E foi sempre assim. Teatro e política deram o tom à vida e, agora, às lembranças do dramaturgo, explicitadas nas 416 páginas dessa sua autobiografia, em que trata ainda, sempre com muito humor, de temas como sexo, Deus, morte e intolerância.

Folha - Não é pessimismo de sua parte iniciar a sua autobiografia com uma imagem de morte?
Dias Gomes -
Eu busquei a imagem mais antiga que eu tinha na minha memória.
Eu nunca me dispus, apesar dos convites das editoras, a escrever uma autobiografia. Eu achava que a minha memória era seletiva, e o caráter dessa seleção eu nunca entendi. Eu achava que eu nunca poderia escrever um livro de memórias porque a minha memória sempre iria me trair.
Um dia, como exercício literário, comecei a testá-la e comecei pelas imagens mais antigas. Fui escrevendo e vi que eu estava fazendo uma injustiça com a minha memória. Me empolguei e fui até o fim. Foi um livro escrito sem nenhuma planificação. É uma narrativa espontânea.
Folha - Você encerra o primeiro capítulo dizendo que tinha um caso mal resolvido com Deus. Ele foi esclarecido?
Gomes -
O fato de eu ter frequentemente tratado de problemas religiosos mostra que o caso estava mesmo mal resolvido. Mas eu me tornei agnóstico depois de uma crise existencial. Hoje não nego nem afirmo a existência de Deus, mas ignorar o problema é impossível.
Mas o fato de eu ser agnóstico não me impede de tratar de temas religiosos, como foi em "O Santo Inquérito", embora ali era só um pretexto para denunciar as arbitrariedades e a violência da ditadura militar. É uma metáfora. Eu não estou tratando da inquisição, mas do regime militar. Eu não estou tratando de um problema religioso, mas de um problema de liberdade, que é também o tema central de "O Pagador de Promessa".
Você não pode ter a pretensão de fazer um depoimento da nossa realidade e excluir a Igreja Católica. Sempre tem um padre na vida da gente. Quando você nasce tem um padre para lhe batizar. Quando você casa tem outro. No elenco que envolve a nossa vida sempre tem um padre.
"O Pagador de Promessa" não é uma peça contra a Igreja Católica, mas contra a intolerância. Ali tem um padre, mas poderia ser um general.
Folha - O uso de temas insólitos e surreais em sua produção, como em "Saramandaia" e "O Bem-Amado", é um gosto pelo realismo fantástico ou são lembranças transformadas de sua infância?
Gomes -
Isso vem do entendimento de que é impossível tratar de um país como o Brasil sem a conotação do absurdo. Nós somos um país onde o absurdo faz parte do cotidiano. É impossível você questionar ou fazer uma reflexão sobre o Brasil de uma maneira estritamente realista.
Em "O Bem-Amado", o Odorico quer construir um cemitério onde não morre ninguém. Em "Saramambaia", essa conotação toma conta de toda a novela.
Folha - Qual foi o caso de censura a peça sua que mais lhe abalou?
Gomes -
A minha primeira peça, "O Pé-de-Cabra", foi proibida e só foi apresentada depois de vários cortes. Depois houve o caso famoso de "O Berço do Herói", que foi proibida pelo Carlos Lacerda. A mesma peça eu adaptei para a TV como "Roque Santeiro", que também foi proibida. Foram casos traumatizantes.
Folha - Você abre o livro falando da morte de seu pai e a morte é uma presença muito constante no livro...
Gomes -
Aliás, agora me dei conta que começo falando de morte e termino falando de morte (risos). A vida é um contínuo perder. Perde-se a mãe, perde-se o irmão, perde-se os cabelos, os dentes.
Folha - E você tem medo de morrer?
Gomes -
Eu tinha um pressentimento que iria morrer cedo quando eu tinha uns 17 anos, na época em que tive uma crise existencial, me tornei agnóstico, neguei Deus... Era uma coisa meio romântica, um pressentimento que eu não teria muito tempo. Eu escrevia compulsivamente pois achava que não teria tempo de deixar uma obra. Mas eu passei dos 30 e esqueci a morte.
A única coisa que eu acho uma grande sacanagem de Deus é a velhice. Eu tenho muito medo de ficar velho. Resisto bravamente à velhice.
Folha - Você disse tudo em sua autobiografia?
Gomes -
Disse tudo aquilo que eu queria contar. Fiz um livro com a preocupação de que não fosse um calhamaço, que as pessoas pudessem ler em um fim-de-semana, por exemplo. Até cortei umas 60 páginas, enxuguei-o. Houve sim uma seleção de fatos que eu julgava, no mínimo, curiosos. Sempre escrevi pensando no público. Se eu achava que não teria interesse, eu cortava.
Folha - Você começa a tratar mais diretamente de televisão na página 255 e como algo que você não pôde evitar em sua carreira. Se você pudesse evitá-la, você escreveria apenas para teatro?
Gomes -
Eu não tenho preconceito algum contra a televisão. Se tivesse, não teria escrito. Mas se eu tivesse que escolher, passaria a vida toda escrevendo para teatro. Mas isso foi uma coisa impossível.
No momento em que eu fui para a televisão, quase todas as minhas peças estavam proibidas no Brasil. Viver de teatro era praticamente impossível. Essa razão econômica realmente influenciou minha ida para a Globo.
Mas também exixtiu no momento a reflexão que, pelas minhas convicções políticas, pela maneira de pensar minha profissão, seria incoerente eu recusar essa proposta de uma platéia gigantesca.
Eu achava que era uma incoerência eu recusar um meio de expressão popular, já que toda a minha geração sonhou com o teatro popular. A televisão me oferecia a platéia popular com a qual sonhamos.
Folha - As suas posturas políticas nunca lhe trouxeram problemas na Rede Globo? Você se sentia à vontade sendo um comunista em uma emissora sempre alinhada com o poder?
Gomes -
Eu me sentia à vontade primeiro porque ninguém mudou uma vírgula em meus textos e nem me disse o que escrever. Nenhum texto foi alterado pela Globo, apenas pela censura, que era o grande problema. Várias vezes a censura pediu a minha cabeça e de outros comunistas, mas a Globo nunca deu. A emissora sempre me prestigiou e por isso eu estou nela até hoje.


Livro: Apenas um Subversivo - Autobiografia Autor: Dias Gomes Lançamento: Bertrand Brasil Quanto: R$ 32 (416 páginas)


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