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RESENHA DA SEMANA
O bolor do amor
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Augusto Abelaira gosta de citar a máxima do biólogo inglês
T.H. Huxley (1825-95): "Ponha
um macaco na frente de uma
máquina de escrever e ao fim
de milhares de anos ele escreverá o "Hamlet'". Não é à toa que
tenha dado a um de seus livros,
de 1975, o título "O Único Animal Que...?", para falar do homem, evidentemente.
Hoje, nada pode divertir mais
esse escritor português nascido
em 1926 -seu romance "Bolor" (1968) está sendo finalmente publicado no Brasil, 30
anos depois- do que a leitura
de textos de divulgação científica. "Já fui um grande leitor de
romances. Hoje, eles me divertem bem menos. As novidades
que os romances podem trazer
são muito menores que as da
etologia, da física, da biologia,
da astronomia", diz.
Quando lê literatura, Abelaira em geral volta aos mesmos
livros. "Tenho o hábito de sublinhá-los. Quando releio "Os
Irmãos Karamazov", percebo
que o sublinho de uma forma
diferente. Se usasse canetas de
cores diferentes, em vez de lápis, teria ali a história da evolução do meu próprio espírito",
diz, como se falasse de um método científico, só que rindo.
Daí "Bolor" poder parecer
para muitos um livro datado.
Por ter sido escrito com o espírito de um tempo em que os romances não só faziam rir, mas
podiam trazer tantas novidades quanto a biologia e a astronomia. O bolor desse pequeno
romance de Abelaira serve hoje
de antídoto, de antibiótico,
contra uma forma mais imediatista, e sobretudo menos inteligente, de vida e de leitura.
Pela opacidade do texto, que
não dá a ver nada de imediato,
mas cria uma catarata de palavras, uma membrana traiçoeira
e lúdica entre a vista e o mundo,
"Bolor" pode parecer também,
para os mais impacientes e de
visão mais estreita, um livro
que fala muito e diz pouco. Porque é resultado de uma concepção, hoje em muito esquecida e
desprezada, que tomava a narrativa literária mais como forma de tecer uma rede múltipla
de sentidos do que apenas
"contar bem" uma história
-embora também conte, e
bastante bem.
"Bolor" é escrito na forma de
um diário. Primeiro, um homem parece escrever seus dias
num caderno íntimo: fala da
mulher, da ex-mulher morta,
de um amigo. Depois, é a mulher que desanda a escrever no
diário do marido, intrometida,
a responder-lhe sobre assuntos
que os dois não ousam levantar
na vida cotidiana, quando estão um na frente do outro. O
diário passa a ser, então, um
diálogo diferido entre o dois,
que continuam a fingir que o
ignoram em suas conversas
diárias.
Já seria bastante estranho se
não fosse, de repente, um novo
dado que muda o sentido de tudo: não era o homem que escrevia o diário e sim a mulher, desde o início, pondo-se na pele do
marido, e construindo um diálogo que só existia na cabeça
dela. E, de repente, percebe-se
que o autor do diário talvez não
seja a mulher, mas o amigo do
marido, e amante dela, pondo-se na pele de ambos.
Afinal, pergunta o leitor, é o
homem que escreve no lugar da
mulher? Ou a mulher que escreve no lugar do amante? Ou o
homem no lugar do amigo e
amante da mulher? Ou a mulher que escreve como se fosse
o marido fingindo ser a mulher? E assim por diante, num
labirinto que coloca em questão não apenas a identidade e a
autoria, uns fingindo ser os outros, mas a cronologia do tempo.
"Bolor" dá a entender, nesse
jogo de identidades, que toda
relação é feita de camadas interpostas. A opacidade entre os
amantes ganha uma analogia
na relação entre autor e leitor.
Ninguém mais sabe quem é
quem nesse jogo de invenção
que é a literatura.
Não é preciso ir muito longe
para perceber que "Bolor" é um
livro satírico sobre o amor
-basta ler o poema de Carlos
de Oliveira estampado como
epígrafe, que já anuncia o sarcasmo dessa rima. Os personagens de Abelaira oscilam entre
concluir que o amor é uma estranha invenção ou mero costume e se debatem com a pergunta mais fatal, mas não menos humorada: "És insubstituível?".
Uma das qualidades da inteligência é permitir a quem a pratica rir de si mesmo e da sua
condição. Quando era jornalista, Abelaira foi entrevistar Otelo de Carvalho, chefe das tropas
portuguesas e líder da revolução: "Quando comecei a fazer a
entrevista, esta coisa falhou",
diz, apontando para o gravador. O comandante-chefe das
Forças Armadas portuguesas,
alegando alguma habilidade
para o negócio, sentou-se no
chão com o escritor e começou
a tentar consertar o aparelho.
"E consertou!", exclama Abelaira. "O comnadante-chefe das
Forças Armadas inglês, alemão
ou francês nunca estaria sentado no chão a tentar consertar o
gravador estragado de um jornalista imbecil. Havia uma diferença substancial. Tinha
qualquer coisa de simbólico. E
é em parte graças à capacidade
de ver essa "diferença substancial", e de rir dela, que Abelaira
escreveu um dos romances
mais inteligentes da literatura
portuguesa contemporânea.
Livro: Bolor
Autor: Augusto Abelaira
Lançamento: Lacerda Editores
Quanto: R$ 22 (162 págs.)
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