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TEATRO
William Shakespeare perde a voz com a morte de John Gielgud
NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL
É só entrar em http://town.hall.org/Archives/radio/ IMS/
HarperAudio. Está lá o que Paulo
Francis chamou de "o elocucionista de Shakespeare", Sir John
Gielgud, morto no domingo, aos
96 anos, em Aylesbury (noroeste
de Londres). No site ou nas célebres gravações dos Sonetos, em fita cassete, da Caedmon, está aquilo que fez a glória do último dos
grandes atores shakespearianos
do século 20: a voz.
Gielgud foi sua voz de tenor e
pouco mais. Kenneth Tynan, o
crítico, escreveu que era "o melhor ator do mundo, do pescoço
para cima". Peter Brook, o diretor, afirmou que ele abandonou
parte do equipamento de ator para realizar "uma verdadeira alquimia" com a voz. "Não é só o discurso nem as melodias, mas o
movimento entre o mecanismo
que forma as palavras e seu entendimento que tornou sua arte tão
cara, tão tocante e tão consciente", escreveu Brook.
Colega de geração de Sir Laurence Olivier, o grande adversário
no palco, e de Sir Ralph Richardson, Gielgud tinha como marcas
próprias não sumir no personagem, não usar palavrão, não ceder
à gíria. Do "triunvirato", foi o
mais elegante.
O timbre é dado, por diferentes
observadores, como uma mescla
de ardente e suave. Uma visita ao
site dos Sonetos e se entende o
que querem traduzir tais adjetivos: ele tem inteiro domínio das
falas, mas apresenta rompantes
ritmados de violência, seguidos
de silêncios; por outro lado, as palavras são claras, definidas.
Gielgud trabalhou até o mês
passado, em gravações e no cinema, após ter deixado o palco em
88. Mas nas últimas décadas já
não era unanimidade. O anglo-brasileiro Ron Daniels, diretor na
Royal Shakespeare Co. desde os
anos 70, é um dos que não se deixavam empolgar por Gielgud, cuja voz descreveu como "BB". O
ator se tornou uma instituição, o
que dizia odiar -embora tenha
lançado a primeira autobiografia,
"Early Stages", nos anos 30.
Gielgud começou no palco em
1917, como um arauto francês em
"Henrique 5º". Em 30, no teatro
Old Vic, onde fez história, estreou
o primeiro Hamlet. A voz foi sua
marca desde o início, a ponto de
afirmar em 91, sobre os primeiros
anos: "Eu falava muito bem. E me
apaixonei pela minha voz".
Duas de suas montagens mais
famosas, nos anos 30, foram "Romeu e Julieta", em que alternou os
papéis de Romeu e Mercutio com
Olivier, e "A Importância de Ser
Prudente". Nas décadas seguintes, "As Idades do Homem", um
monólogo-antologia de Shakespeare, e versões de "Macbeth",
"Rei Lear", "Conto de Inverno" e
"A Tempestade", esta com seu
papel preferido, Próspero.
O espectador contemporâneo
se lembra de Gielgud por Próspero ou por aquilo que o cineasta
Peter Greenaway fez dele em
"Prospero's Books" (84). Gielgud
esteve em nada menos que 130 filmes, a maioria a partir dos anos
60. Fez desde a voz do Fantasma
no "Hamlet" de Olivier até o mordomo de Dudley Moore em "Arthur", pelo qual levou o Oscar de
coadjuvante. Em "Acting Shakespeare", que escreveu em 91, Gielgud diz que a única atuação de
que se orgulhava, no cinema, era
como o escritor de "Providence"
(72), de Alain Resnais.
Sir John Gielgud só foi nomeado cavaleiro em 53, após Olivier e
Richardson muito insistirem junto ao governo inglês. A barreira
imposta por uma campanha moralista, mas afinal vencida, era ser
homossexual. Logo depois, foi
obrigado a pagar dez libras de
multa por importunar com "propósitos imorais" no bairro de
Chelsea, em Londres. O ator, que
era conservador em política e estética, viveu 40 anos com Martin
Hensler, que morreu em 99.
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