São Paulo, quarta-feira, 24 de maio de 2000


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TEATRO

William Shakespeare perde a voz com a morte de John Gielgud

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

É só entrar em http://town.hall.org/Archives/radio/ IMS/ HarperAudio. Está lá o que Paulo Francis chamou de "o elocucionista de Shakespeare", Sir John Gielgud, morto no domingo, aos 96 anos, em Aylesbury (noroeste de Londres). No site ou nas célebres gravações dos Sonetos, em fita cassete, da Caedmon, está aquilo que fez a glória do último dos grandes atores shakespearianos do século 20: a voz.
Gielgud foi sua voz de tenor e pouco mais. Kenneth Tynan, o crítico, escreveu que era "o melhor ator do mundo, do pescoço para cima". Peter Brook, o diretor, afirmou que ele abandonou parte do equipamento de ator para realizar "uma verdadeira alquimia" com a voz. "Não é só o discurso nem as melodias, mas o movimento entre o mecanismo que forma as palavras e seu entendimento que tornou sua arte tão cara, tão tocante e tão consciente", escreveu Brook.
Colega de geração de Sir Laurence Olivier, o grande adversário no palco, e de Sir Ralph Richardson, Gielgud tinha como marcas próprias não sumir no personagem, não usar palavrão, não ceder à gíria. Do "triunvirato", foi o mais elegante.
O timbre é dado, por diferentes observadores, como uma mescla de ardente e suave. Uma visita ao site dos Sonetos e se entende o que querem traduzir tais adjetivos: ele tem inteiro domínio das falas, mas apresenta rompantes ritmados de violência, seguidos de silêncios; por outro lado, as palavras são claras, definidas.
Gielgud trabalhou até o mês passado, em gravações e no cinema, após ter deixado o palco em 88. Mas nas últimas décadas já não era unanimidade. O anglo-brasileiro Ron Daniels, diretor na Royal Shakespeare Co. desde os anos 70, é um dos que não se deixavam empolgar por Gielgud, cuja voz descreveu como "BB". O ator se tornou uma instituição, o que dizia odiar -embora tenha lançado a primeira autobiografia, "Early Stages", nos anos 30.
Gielgud começou no palco em 1917, como um arauto francês em "Henrique 5º". Em 30, no teatro Old Vic, onde fez história, estreou o primeiro Hamlet. A voz foi sua marca desde o início, a ponto de afirmar em 91, sobre os primeiros anos: "Eu falava muito bem. E me apaixonei pela minha voz".
Duas de suas montagens mais famosas, nos anos 30, foram "Romeu e Julieta", em que alternou os papéis de Romeu e Mercutio com Olivier, e "A Importância de Ser Prudente". Nas décadas seguintes, "As Idades do Homem", um monólogo-antologia de Shakespeare, e versões de "Macbeth", "Rei Lear", "Conto de Inverno" e "A Tempestade", esta com seu papel preferido, Próspero.
O espectador contemporâneo se lembra de Gielgud por Próspero ou por aquilo que o cineasta Peter Greenaway fez dele em "Prospero's Books" (84). Gielgud esteve em nada menos que 130 filmes, a maioria a partir dos anos 60. Fez desde a voz do Fantasma no "Hamlet" de Olivier até o mordomo de Dudley Moore em "Arthur", pelo qual levou o Oscar de coadjuvante. Em "Acting Shakespeare", que escreveu em 91, Gielgud diz que a única atuação de que se orgulhava, no cinema, era como o escritor de "Providence" (72), de Alain Resnais.
Sir John Gielgud só foi nomeado cavaleiro em 53, após Olivier e Richardson muito insistirem junto ao governo inglês. A barreira imposta por uma campanha moralista, mas afinal vencida, era ser homossexual. Logo depois, foi obrigado a pagar dez libras de multa por importunar com "propósitos imorais" no bairro de Chelsea, em Londres. O ator, que era conservador em política e estética, viveu 40 anos com Martin Hensler, que morreu em 99.


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