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GASTRONOMIA
De louco, todos temos um pouco
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Que coisa! Aquela foto do
senador com a boca rasgada
de pequi diz tudo de nossa brasilidade! Em Goiás e nunca viu um
pequi? É como um francês engolir
um caroço de pêssego por não saber que pêssego tem caroço. Fiquei com vontade de fazer um
postal daquela cadeira de dentista
e da bocarra, para vender em banca, símbolo augusto de nossa ignorância quanto às coisas brasileiras.
E o pior é que esta é a nossa mais
perfeita imagem e semelhança.
Com um país deste tamanho, sabemos, quando muito, de nosso
canto, e o resto se perde na imensidão. Quase tudo do Brasil nos é
estranho.
Ando apertada com os leitores
que querem saber mundos e fundos das comidas de roça, exilados
das origens, presas da cidade
grande com carência de coisas
miúdas que lhes teceram a infância.
É uma sede funda que ninguém
consegue mitigar, muito menos
eu, criada à sombra do Empório
Santa Luzia, da venda de seu Manuel, da feira da Oscar Freire, com
tudo em pacote, pesado na balança, vida de cidade, mesmo...
Verdade que tinha as férias, mas
o que são férias na vida de uma
pessoa? Dois minutos de jabuticaba, um segundo de pitangas, um
quarto de hora de frango ensopado.
Além disso, era muito difícil sair
da cidade grande para a roça.
Conforme a distância da roça, é
claro, mas a minha era longe de
doer. De trem e com baldeação
em Barra do Piraí, baldeação, pode existir palavra mais perigosa?
Aquele medo irracional de sempre, de tirar o pé de um mundo e
de não conseguir botar o pé no
outro... Barra do Piraí, um verdadeiro purgatório, só uma estação,
e um rio que não adiantava nada
porque não molhava aquela secura de deserto, fuligem, trem que
travava a garganta. Era a antecâmara do céu azul de Minas, das limas de bico, dos meninos de cabelo louro estriado, do monjolo,
do pé de ingá debruçado na água e
da loucura, da mansa loucura.
Sempre me lembro de Minas
com olhos de criança deslumbrada, encantada com o lado passividade-azul-cremosa, mas que ninguém se engane, ele serve para cobrir o lado escuro, o passado que
pesa sem explicação, uma decadência no ar, um leve ruir que
acontecia (acontece?) o tempo todo.
De Belo Horizonte, que também
era uma pedra no caminho da cidade de uma rua só, não vou falar
agora, só de um cacho de uvas de
chocolate em papel laminado
dentro de uma cristaleira, objeto
constante de desejo, e as balas duras da Baleira Suissa. E o quintal
da casa da rua da Bahia, quintal
mais estranho, no tempo em que
ainda se plantavam couves e taiobas em desarranjo, chegava-se a
ele por escada íngreme de cimento, todo simétrico em canteiros de
buxo, cravos-de-defunto, rosas
frias e no céu do tal azul imaculado os urubus de BH, as premonições, as rezas, os sinos, os pecados
dos homens feios vestidos de escuro, sonsos, ah, como eram sonsos os homens de Minas, de grande e fino trato com as mulheres da
vida e de trato nenhum com a vida das suas mulheres. Exceções à
parte.
E enfim chegava-se de jardineira àquela Minas doida de pedra,
de mão dada com a mãe. Era o lado doido mesmo, hoje estou falando do lado doido, dos pomares
sombreados de mangueiras, das
minhocas sob os troncos podres
de bananeiras, da galinha cega
afogada no seu próprio escuro se
debatendo no rego gelado.
De Minas pobre, dourada, mas
pobre. Vá visitar Malvina que se
casou e mudou, vá pegar muda de
bambu na casa de Jofre, vá catar
coquinho no sítio da Fia da Rosa.
E então eram as velhas de cabelo
cortado à faca, bocas murchas
chupando meias laranjas murchas. Alguém muito nervoso pegou fogo na beira do fogão, o epiléptico rolou no chão de pedra, a
muié verculosa (tuberculosa)
chorou. O moço visitante, no
meio da conversa de causos animados, levantou-se de chapéu na
mão e, rígido, anunciou: "Um dia,
lá em casa, nóis matou um tatu" e
sentou de novo, cara de alívio.
E ainda havia os ossos que desciam do morro do cemitério em
noite de chuva braba e inundavam a cozinha da mulher. Ela passava as noites em claro, verdes
olhos vermelhos, lutando de rodo
contra a invasão das almas.
Nesses lugares, não se pode sentar praça, os leitores hão de concordar, sob pena de crescer santo
ou louco, as duas alternativas
misturadas a cocô de galinha.
Escapei da verculose, de louco
todos temos um pouco, não maldigo a sorte de ter morado a vida
toda ao pé do bacalhau e do presunto cru, mas é por isso, leitores,
saturninamente, que pouco lhes
posso contar sobre o pequi, a gabiroba, a fruta pão, a preá, a paca e
o tatu, cotia, não.
ninahort@uol.com.br
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