São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2001

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GASTRONOMIA

De louco, todos temos um pouco

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Que coisa! Aquela foto do senador com a boca rasgada de pequi diz tudo de nossa brasilidade! Em Goiás e nunca viu um pequi? É como um francês engolir um caroço de pêssego por não saber que pêssego tem caroço. Fiquei com vontade de fazer um postal daquela cadeira de dentista e da bocarra, para vender em banca, símbolo augusto de nossa ignorância quanto às coisas brasileiras.
E o pior é que esta é a nossa mais perfeita imagem e semelhança. Com um país deste tamanho, sabemos, quando muito, de nosso canto, e o resto se perde na imensidão. Quase tudo do Brasil nos é estranho.
Ando apertada com os leitores que querem saber mundos e fundos das comidas de roça, exilados das origens, presas da cidade grande com carência de coisas miúdas que lhes teceram a infância.
É uma sede funda que ninguém consegue mitigar, muito menos eu, criada à sombra do Empório Santa Luzia, da venda de seu Manuel, da feira da Oscar Freire, com tudo em pacote, pesado na balança, vida de cidade, mesmo...
Verdade que tinha as férias, mas o que são férias na vida de uma pessoa? Dois minutos de jabuticaba, um segundo de pitangas, um quarto de hora de frango ensopado.
Além disso, era muito difícil sair da cidade grande para a roça. Conforme a distância da roça, é claro, mas a minha era longe de doer. De trem e com baldeação em Barra do Piraí, baldeação, pode existir palavra mais perigosa? Aquele medo irracional de sempre, de tirar o pé de um mundo e de não conseguir botar o pé no outro... Barra do Piraí, um verdadeiro purgatório, só uma estação, e um rio que não adiantava nada porque não molhava aquela secura de deserto, fuligem, trem que travava a garganta. Era a antecâmara do céu azul de Minas, das limas de bico, dos meninos de cabelo louro estriado, do monjolo, do pé de ingá debruçado na água e da loucura, da mansa loucura.
Sempre me lembro de Minas com olhos de criança deslumbrada, encantada com o lado passividade-azul-cremosa, mas que ninguém se engane, ele serve para cobrir o lado escuro, o passado que pesa sem explicação, uma decadência no ar, um leve ruir que acontecia (acontece?) o tempo todo.
De Belo Horizonte, que também era uma pedra no caminho da cidade de uma rua só, não vou falar agora, só de um cacho de uvas de chocolate em papel laminado dentro de uma cristaleira, objeto constante de desejo, e as balas duras da Baleira Suissa. E o quintal da casa da rua da Bahia, quintal mais estranho, no tempo em que ainda se plantavam couves e taiobas em desarranjo, chegava-se a ele por escada íngreme de cimento, todo simétrico em canteiros de buxo, cravos-de-defunto, rosas frias e no céu do tal azul imaculado os urubus de BH, as premonições, as rezas, os sinos, os pecados dos homens feios vestidos de escuro, sonsos, ah, como eram sonsos os homens de Minas, de grande e fino trato com as mulheres da vida e de trato nenhum com a vida das suas mulheres. Exceções à parte.
E enfim chegava-se de jardineira àquela Minas doida de pedra, de mão dada com a mãe. Era o lado doido mesmo, hoje estou falando do lado doido, dos pomares sombreados de mangueiras, das minhocas sob os troncos podres de bananeiras, da galinha cega afogada no seu próprio escuro se debatendo no rego gelado.
De Minas pobre, dourada, mas pobre. Vá visitar Malvina que se casou e mudou, vá pegar muda de bambu na casa de Jofre, vá catar coquinho no sítio da Fia da Rosa. E então eram as velhas de cabelo cortado à faca, bocas murchas chupando meias laranjas murchas. Alguém muito nervoso pegou fogo na beira do fogão, o epiléptico rolou no chão de pedra, a muié verculosa (tuberculosa) chorou. O moço visitante, no meio da conversa de causos animados, levantou-se de chapéu na mão e, rígido, anunciou: "Um dia, lá em casa, nóis matou um tatu" e sentou de novo, cara de alívio.
E ainda havia os ossos que desciam do morro do cemitério em noite de chuva braba e inundavam a cozinha da mulher. Ela passava as noites em claro, verdes olhos vermelhos, lutando de rodo contra a invasão das almas.
Nesses lugares, não se pode sentar praça, os leitores hão de concordar, sob pena de crescer santo ou louco, as duas alternativas misturadas a cocô de galinha.
Escapei da verculose, de louco todos temos um pouco, não maldigo a sorte de ter morado a vida toda ao pé do bacalhau e do presunto cru, mas é por isso, leitores, saturninamente, que pouco lhes posso contar sobre o pequi, a gabiroba, a fruta pão, a preá, a paca e o tatu, cotia, não.

ninahort@uol.com.br



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