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CONTARDO CALLIGARIS
A vida é o que interessa, o resto não tem pressa
Durante uma recepção em
Nova York, na quinta-feira
passada, conversava com alguns
executivos da área financeira. Falávamos dos apagões no Brasil e
nos EUA quando mais um convidado se agregou ao grupo, anunciando que seu dia fora glorioso.
O recém-chegado era advogado e
passara a tarde trabalhando na
aquisição do grupo financeiro
Banamex (o segundo banco mexicano em ordem de grandeza)
pelo Citigroup: uma compra de
US$ 12,5 bilhões. Ele acrescentou,
com orgulho, que muito cedo só
sobrarão no mundo quatro ou, no
máximo, cinco bancos globais.
Desrespeitei as convenções do
bom convívio social e interrompi
o relato entusiasmado do jovem
advogado para declarar que acho
essas fusões péssimas. A idéia de
que sobrem só poucos enormes
bancos globais me apavora e me
indigna.
Expliquei: eu não voto em bancos, não escolho políticas financeiras nem dirigentes administrativos. Meu controle (bem limitado) sobre o mundo passa pelas
eleições e pelo pequeno alcance de
atividades políticas locais (expresso opiniões, frequento associações da sociedade civil etc.).
Ora -acrescentei-, quando as
forças que movem as finanças
mundiais são colossos mais poderosos do que os governos nacionais, o exercício democrático fica
comprometido. Que diferença faria meu voto num mundo onde
quatro bancos decidem como,
quando e para onde vai o capital?
Com minha cédula na mão ou tomando a palavra numa associação de pais e mestres, vou ser feito
de palhaço enquanto, em algum
escritório de Zurique ou de Nova
York, homens em quem nenhum
povo votou decidem se e como
nossa comunidade receberá crédito, investimentos etc.
Calei-me, enfim, arrependendo-me um pouco de minhas palavras. Pensei: é apenas um jovem
advogado que se sente importante. Vai ver que, atrás do entusiasmo infantil, ele esconde um coração generoso. De fato, meu interlocutor não comprou a briga. Ao
contrário, como se quisesse se justificar, ele disse: "Você entende, é
que há um bom dinheiro para
nós" (ou seja, para seu escritório
de advocacia). Nenhum cinismo
nisso. Ele tentava mesmo ganhar
minha simpatia. Mas como?
Contava com minha cumplicidade, apostava que compartilhássemos a convicção (dominante) de que, no fundo, o bem-estar
justifica qualquer empreendimento. Por esse caminho, quem
sabe eu também mudasse de idéia
sobre fusões e aquisições: quatro
bancos globais, justamente por serem poucos, podem se entender
melhor e garantir estabilidade a
nosso mundo. Portanto todos teriam uma vida, se não boa, melhor. Isso não é mais importante
que qualquer fala "abstrata" sobre democracia, participação etc.?
O sorriso conciliatório do jovem
advogado supunha, com razão, o
triunfo de um ideário que, desde
o fim do século 18, substituiu as
aspirações ideais do Antigo Regime ou do mundo clássico pelos
valores burgueses da saúde, do
bem-estar, do conforto. Pergunte
ao redor de si: qual é o valor supremo? Na esmagadora maioria
dos casos, a resposta hodierna será: a vida. Quem ousaria opor-se?
A modernidade funda seus valores de bem-estar e de conforto numa evidência apresentada como
biológica.
O que o homem quer? Viver,
"naturalmente". E, portanto, viver bem, não é? É necessário um
sério esforço para se lembrar de
que essa opção "pela vida" não é
nada natural. Ela serve para impor a vida boa e o conforto como
valores supremos, referências e
justificações morais. Para um estóico, um cristão dos primeiros séculos e mesmo qualquer sujeito
até o século 18, na hierarquia dos
valores, a vida viria depois da
dignidade, da verdade, da fé, da
honra etc. Aliás, a vida passou a
encabeçar a lista dos valores logo
que surgiram ideais populares de
participação política e de justiça
social. Por que será?
No café Landolt, em Genebra,
perto da faculdade de letras, numa noite de 1969, encontrei um
colega estudante. Chamava-se
Dettmeyer, era holandês e decididamente impopular por ser o único da turma que se declarava de
extrema-direita. Cuidado: Dettmeyer não era autoritário ou nazi-fascista, mas anarquista, niilista e propagandista do "Único", de
Max Stirner. Eu, ao contrário, tinha a reputação banal de ser um
esquerdista. Dettmeyer sentou-se
perto de mim e disse-me solenemente: "Temos em comum o essencial: um sentimento trágico da
existência". Desprezei aquela observação e encorajei Dettmeyer a
levar seu bigode nietzschiano para outra mesa.
Diante do advogado nova-iorquino, a frase de Dettmeyer, esquecida há 30 anos, voltou e fez
sentido. Na verdade, senti nostalgia de Dettmeyer. Por não estar
obnubilado pelo aparente sucesso
da festa de 68, ele devia perceber
melhor do que eu a invasão iminente que nos espreitava, ouvir o
rolo compressor da ideologia do
bem-estar -sorridente e vitoriosa pela facilidade sedutora de
suas receitas: esqueçam suas complicadas esperanças existenciais,
políticas, sociais.
A saúde, a forma física, o conforto -em suma, a vida é o que
interessa, o resto não tem pressa.
ccalligari@uol.com.br
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