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NINA HORTA
Um cozinheiro que sabe brincar
Por que não nos importamos com outras transformações e implicamos tanto com as do Adrià?
RECEBI, CHEIA de esperança,
um DVD que se chama "Decoding Ferran Adrià", apresentado por Anthony Bourdain, que
até o outro dia, com a boca cheia de
sanduíche de mortadela e pastel do
Mercadão, falava mal da cozinha de
Adrià, ou melhor, não queria se encontrar com ela.
Fiquei contente porque enfiei na
cabeça que é só me darem os pozinhos e líquidos e colas e desidratadores do Adrià, é só nos passarem os
nomes dos catalizadores e desagregadores que usa (como os cientistas
são obrigados a fazer), e lá estaríamos nós bebendo castanha-de-caju
e castanha-do-pará, com dez gotas
de guaraná e uma pedrinha de gelo
de jambu e seria delicioso. E todos
diriam: "Ai, que bom! É a essência da
Amazônia!"
Pensei até em endereços, mas o
Bourdain foi lá para comer, o safado.
Adrià o levou primeiro a uma loja
de presuntos daqueles porcos que
comem maçãs ou belotas com creme, são cevados com as frutas tão
proibidas quanto as de Eva, têm de
ficar soltos no campo, correndo como cachorrinhos mimados e, no
fim, sai um presunto que reflete a altitude, o clima, o vento que bate nas
flores e nas frutas. O dono da loja
prova uma lasquinha e sabe imediatamente a paisagem do porco, seus
olhos se anuviam como os de provadores de vinho ao enxergarem de
longe o terroir. Seria até o caso de
uma experimentação de porcos para
ver com que vinho combinam.
Bourdain aprende que um presunto cru é uma transformação que
melhora o sabor daquele alimento.
Por que não nos importamos com as
outras transformações que viemos
praticando através dos anos e por
que implicamos tanto com as do
Adrià? Esse foi o primeiro passo.
O segundo foi visitar o laboratório.
El Taller de Adrià. Seria o portal da
loucura ou da novidade? O Bourdain
teve que se render à limpeza asséptica, ao design futurista, à equipe silenciosa, ordenada, disciplinada, onde o chef Adrià, no meio do aço inoxidável, inventa. Neste dia, encasquetou de fazer com que um pêssego
se transformasse em foie gras, crocante de frigideira por fora e molinho por dentro. Fico pensando que
um físico e um químico seriam melhores para ajudar, e o pobre Adrià já
nem precisaria de tantas experiências, pois diriam secamente: "Manga
a tal temperatura etc e tal não se
transforma em carpaccio". E pronto, como faria uma boa cozinheira ao
ser apresentada a uma receita errada de bolo. Acho que é por pura preguiça laboratorial que não chegamos à altura de um Adrià.
O Bourdain, com cara de sonso,
escritor bom bancando um destrambelhado gourmet, prova a comida do Adrià. Começaram por um
frapê adstringente de folhas de pinheiro e chips de alcachofra. O americano começou a se animar com um
torresmo de pele de porco muito
bem frito, sequinho, e passado, na
hora de comer, no iogurte. A novidade era passar no iogurte, porque pele
de porco frita já é bom. Gemas de
ovos crus, caramelizadas, você quebra o caramelo com os dentes e lá está aquela coisa que tem gosto de ovo,
o que é, o que é?
Uma cereja de cabinho num fondant branco, como os nossos docinhos de casamento. Mas não! É uma
cereja envolta na banha daqueles
porcos. E o caviar que explode na
boca do Bourdain, tão leve, é feito de
maçãs, um delicado puzzle. E imaginem um lambari de botequim, frito,
sequinho, envolto por algodão-doce
sem açúcar. Uma sardinha transcendental. Sobremesa: pensem numa bola de neve cortada ao meio, recheada de frutas vermelhas e tampada com a outra metade. Você
morde a bola e vem o Natal e a estação inteira com os presentes embrulhados e Noel de quebra. Pela cara
do Bourdain, o restaurante é um circo chique de surpresas frescas e infantis que tem magia o bastante para
te levar tão longe. Adrià, um belo cozinheiro que ainda sabe brincar.
ninahorta@uol.com.br
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