São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NINA HORTA

Um cozinheiro que sabe brincar

Por que não nos importamos com outras transformações e implicamos tanto com as do Adrià?

RECEBI, CHEIA de esperança, um DVD que se chama "Decoding Ferran Adrià", apresentado por Anthony Bourdain, que até o outro dia, com a boca cheia de sanduíche de mortadela e pastel do Mercadão, falava mal da cozinha de Adrià, ou melhor, não queria se encontrar com ela.
Fiquei contente porque enfiei na cabeça que é só me darem os pozinhos e líquidos e colas e desidratadores do Adrià, é só nos passarem os nomes dos catalizadores e desagregadores que usa (como os cientistas são obrigados a fazer), e lá estaríamos nós bebendo castanha-de-caju e castanha-do-pará, com dez gotas de guaraná e uma pedrinha de gelo de jambu e seria delicioso. E todos diriam: "Ai, que bom! É a essência da Amazônia!" Pensei até em endereços, mas o Bourdain foi lá para comer, o safado.
Adrià o levou primeiro a uma loja de presuntos daqueles porcos que comem maçãs ou belotas com creme, são cevados com as frutas tão proibidas quanto as de Eva, têm de ficar soltos no campo, correndo como cachorrinhos mimados e, no fim, sai um presunto que reflete a altitude, o clima, o vento que bate nas flores e nas frutas. O dono da loja prova uma lasquinha e sabe imediatamente a paisagem do porco, seus olhos se anuviam como os de provadores de vinho ao enxergarem de longe o terroir. Seria até o caso de uma experimentação de porcos para ver com que vinho combinam.
Bourdain aprende que um presunto cru é uma transformação que melhora o sabor daquele alimento. Por que não nos importamos com as outras transformações que viemos praticando através dos anos e por que implicamos tanto com as do Adrià? Esse foi o primeiro passo. O segundo foi visitar o laboratório.
El Taller de Adrià. Seria o portal da loucura ou da novidade? O Bourdain teve que se render à limpeza asséptica, ao design futurista, à equipe silenciosa, ordenada, disciplinada, onde o chef Adrià, no meio do aço inoxidável, inventa. Neste dia, encasquetou de fazer com que um pêssego se transformasse em foie gras, crocante de frigideira por fora e molinho por dentro. Fico pensando que um físico e um químico seriam melhores para ajudar, e o pobre Adrià já nem precisaria de tantas experiências, pois diriam secamente: "Manga a tal temperatura etc e tal não se transforma em carpaccio". E pronto, como faria uma boa cozinheira ao ser apresentada a uma receita errada de bolo. Acho que é por pura preguiça laboratorial que não chegamos à altura de um Adrià.
O Bourdain, com cara de sonso, escritor bom bancando um destrambelhado gourmet, prova a comida do Adrià. Começaram por um frapê adstringente de folhas de pinheiro e chips de alcachofra. O americano começou a se animar com um torresmo de pele de porco muito bem frito, sequinho, e passado, na hora de comer, no iogurte. A novidade era passar no iogurte, porque pele de porco frita já é bom. Gemas de ovos crus, caramelizadas, você quebra o caramelo com os dentes e lá está aquela coisa que tem gosto de ovo, o que é, o que é?
Uma cereja de cabinho num fondant branco, como os nossos docinhos de casamento. Mas não! É uma cereja envolta na banha daqueles porcos. E o caviar que explode na boca do Bourdain, tão leve, é feito de maçãs, um delicado puzzle. E imaginem um lambari de botequim, frito, sequinho, envolto por algodão-doce sem açúcar. Uma sardinha transcendental. Sobremesa: pensem numa bola de neve cortada ao meio, recheada de frutas vermelhas e tampada com a outra metade. Você morde a bola e vem o Natal e a estação inteira com os presentes embrulhados e Noel de quebra. Pela cara do Bourdain, o restaurante é um circo chique de surpresas frescas e infantis que tem magia o bastante para te levar tão longe. Adrià, um belo cozinheiro que ainda sabe brincar.

ninahorta@uol.com.br


Texto Anterior: Tentações
Próximo Texto: Comida: Perfeição ou nada
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.