São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2007

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Comida

Perfeição ou nada

Autor americano fala sobre a recém-lançada biografia do chef francês Bernard Loiseau; com três estrelas no "Michelin", ele se suicidou em 2003


O francês Bernard Loiseau, que era chef do La Côte d'Or, em Saulieu


JANAINA FIDALGO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em um país como a França, onde os restaurantes são avaliados e discutidos de maneira tão calorosa quanto o futebol por aqui, não é de estranhar que a meta de um chef de cozinha daquele país sejam as cobiçadas três estrelas no "Michelin", distinção máxima do mais importante guia de restaurantes do mundo. Com Bernard Loiseau, um francês de Clermont-Ferrand, não foi diferente. Desde os tempos como aprendiz no restaurante da família Troisgros, templo da gastronomia francesa, em Roanne, o ambicioso Loiseau sabia onde queria chegar: no topo do ranking do "Michelin", ao lado dos renomados Jean e Pierre Troisgros, Paul Bocuse, Michel Guérard e de outros poucos eleitos.
Loiseau perseguiu de maneira obcecada esse objetivo, até que, em 1991, seu restaurante La Côte d'Or, em Saulieu, na Borgonha, foi agraciado com a terceira estrela no "Michelin". O que parecia finalmente ser a glória se transformou em tragédia anos depois. Em fevereiro de 2003, ele se suicidou, aos 52 anos, com um tiro na cabeça e consternou a França.
À época, a mesma crítica que o consagrou foi apontada como vilã da história. Isto porque circulava um boato, que se confirmou falso antes mesmo da morte dele, de que Loiseau poderia perder sua terceira estrela no "Michelin". Para completar o clima de derrota que pairava no ar, o La Côte foi rebaixado de 19/20 para 17/20 pelo "GaultMillau", guia menos prestigioso, mas pelo qual tinha muita estima.
Na biografia escrita pelo americano Rudolph Chelminski (amigo de Loiseau), que chega agora ao Brasil, conhece-se outra faceta do hiperbólico chef. "O Perfeccionista" (ed. Record, R$ 50; 420 págs) relata informações que ajudam a montar o quebra-cabeças da tragédia: Loiseau tinha transtorno bipolar, estava endividado, sua comida vinha sendo criticada e ele não suportava a idéia de não ser o melhor nem de ver cada vez menos clientes em seu restaurante.
"A tragédia de Bernard foi cumulativa. Maníaco-depressivo, ele estava "para cima" talvez 90% do tempo, mas quando estava "para baixo", em um de seus ciclos depressivos, tornava-se incrivelmente frágil. Naquela fria e chuvosa segunda-feira de fevereiro, havia apenas dois clientes em seu grande restaurante, e a depressão e a humilhação que o consumiram por semanas de repente se tornaram além da conta", diz Rudolph Chelminski. Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida pelo autor à Folha:
 

FOLHA - O sr. acompanhou a trajetória de Bernard Loiseau por mais de 30 anos. Como era conviver com uma pessoa tão obcecada com as três estrelas do "Michelin"?
RUDOLPH CHELMINSKI -
Era como andar numa roda-gigante. O entusiasmo, o otimismo e a generosidade infinitos de Bernard eram impressionantes, mas, ao mesmo tempo, ele era constantemente inseguro. Adorava as pessoas e cozinhar para elas, mas precisava receber amor em troca. Um prato que retornava pela metade poderia lhe provocar profundo desespero, mas se dissesse que seu prato estava maravilhoso, ele lhe abriria o maior sorriso.

FOLHA - Quando Loiseau cometeu suicídio, muitos chefs usaram a tragédia para culpar os críticos e os guias de restaurante pelo ocorrido. Mas o livro mostra que existiam outros problemas. Ele sofria de transtorno bipolar, era obcecado pelas estrelas do "Michelin" e estava com problemas financeiros. Como o sr. vê esse fato?
CHELMINSKI -
Sim, claro que os guias de restaurante e críticos são em certa medida culpados pela morte dele. Esse fato não pode ser ignorado. Por 20 anos ou mais, à medida que Bernard fez seu caminho em direção ao topo da classificação do "Michelin", todos os críticos o adoravam, mas, após ele atingir o topo, foi se tornando objeto de críticas por não evoluir mais. Evoluir para onde? Ele não sabia. Pensou ter refinado sua cozinha à perfeição, mas o público francês é difícil e volúvel, está sempre demandando novidades. Bernard se sentiu humilhado por sua rejeição.
Combinando a seu transtorno bipolar, isso deu origem a um coquetel mortífero. Quantos heróis e heroínas da literatura já não se mataram por terem sido rejeitados pelos seus amantes? É exatamente o caso de Bernard. Os "amantes", no caso dele, eram os críticos e os guias que começaram a lhe dar as costas.

FOLHA - O sr. acha possível que outra tragédia volte a ocorrer?
CHELMINSKI -
Sim, temo que isso aconteça novamente. Já tinha ocorrido no século 17, com o famoso chef Vatel, e no século 20, com o chef parisiense Alain Zick. Tomar conta de um restaurante é exaustivo e estressante, e estas pessoas levam sua atividade muito, muito a sério.

FOLHA - No livro, o sr. menciona a nota de François Simon, o crítico do "Le Figaro", sobre o boato de que Loiseau poderia perder a terceira estrela. Como o sr. vê a participação dele nisso?
CHELMINSKI -
François Simon é provavelmente o melhor crítico francês de restaurantes e também um dos que escreve mais habilmente sobre o assunto. Eu o admiro. Jornalisticamente, penso, ele errou ao publicar o boato de que Bernard ia perder sua terceira estrela no "Michelin". O boato provou ser falso, mas representou uma terrível humilhação para Bernard apesar de tudo.

FOLHA - No Brasil, é improvável imaginar que a morte de um chef pudesse causar consternação semelhante à ocorrida na França. O sr. acha que tal reação poderia ser explicada pelo fato de naquele país a comida e os grandes chefs serem muito importantes, tal como são os jogares de futebol aqui?
CHELMINSKI -
Os melhores profissionais da alta gastronomia levam seu trabalho muito a sério -e as pessoas que freqüentam seus restaurantes também. Na França, os chefs top são acompanhados pela mídia tal como estrelas de cinema. Perder uma posição é uma bofetada, uma terrível desgraça. É como se Tom Cruise ou Nicole Kidman fossem relegados a baratos filmes B depois de seus dias de glória. Pode imaginar Pelé, Ronaldo ou Ronaldinho ouvindo que foram rebaixados para algum time local porque não são bons o bastante?

FOLHA - O livro do sr. foi lançado na França? Como foi recebido?
CHELMINSKI -
Tenho de dizer que meu livro não foi publicado na França. Isso é fonte de tristeza e frustração para mim. Não ficaria surpreso se o meio literário francês considerasse uma heresia um norte-americano ter escrito uma biografia autorizada de seu herói nacional da gastronomia.


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