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O Brasil ingênuo encontra a bobeira de Hollywood
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Parece uma novela das seis,
mas não é. "For All", filme de
Luís Carlos Lacerda, tem tantas fragilidades, mostra-se à
primeira vista como um produto cultural tão quebradiço e
tênue, que até desperta simpatia no espectador. Tudo ali é
uma gracinha.
"For All" conta a história de
uma linda moça do Rio Grande Norte, noiva de um rapaz
de valor. Os dois estão loucos
para casar. Ocorre que estamos em plena Segunda Guerra.
Estamos nos anos 40. E daí?
Daí que em Natal estabeleceu-se uma base militar americana. Toda base militar americana tem soldados loiros e
corteses. A mocinha abandona
o noivo para se apaixonar pelo
americano. O noivo não gosta
nem um pouco.
Este é o centro dramático de
"For All". Outros subenredos se
tramam. O pai da mocinha é
sapateiro, veio da Itália, admira Mussolini. Transforma-se
num espião do Eixo. Espião
inofensivo, claro -já que tudo
é inofensivo nesse filme.
Passemos a outro drama. O
filho do espião -irmão da
noiva do segundo parágrafo-
se apaixona por uma bonita
moreninha. Acontece que a
moreninha é prostituta. E mesmo que queira não poderá largar essa vida: deve US$ 140 ao
cafetão. Que é barbeiro também. E o rapaz que gostava da
prostituta vai fazer a barba pela primeira vez. E aí...
Bom, como novela das seis já
é o bastante. Falta dizer o que,
em "For All", não é novela. Em
primeiro lugar, toda essa patacoada do enredo, tudo o que
há aqui de bobinho e sorridente com covinhas nas bochechas, é tratado com máxima
ironia. Com grande inteligência.
O filme na verdade é melancólico. Sabe perfeitamente que
imita uma novela das seis. A
abertura, usando velhas fotos,
velhos cromos turísticos, já é
uma obra-prima de ironia. Em
vez de ver um avião decolando, por exemplo, o espectador
vê aproximações sucessivas de
uma mesma imagem, tentando toscamente dar idéia de um
aeroplano em movimento.
Percebemos que o diretor está brincando com a precariedade técnica do cinema nacional. E que está brincando,
também, com o otimismo do
diretor que se acredita capaz
de superá-la. Assume a fragilidade. E vai em frente.
Qual o termo de comparação
desse diretor provinciano, desse cineasta brasileiro? Claro, o
cinema de Hollywood. Ei-lo
tentando "fazer cinema", ei-lo
tentando montar no Brasil
uma "fábrica de ilusões". As
ilusões se denunciam, entretanto, dada a fraqueza de nossa economia. Como reagir? Investindo, mais do que nunca,
na ilusão.
Ou seja, todos os problemas
dramáticos do roteiro recebem
as mais incríveis soluções para
desaguar num "happy end". O
cafetão se mostra generoso, o
pai espião se salva por encanto, o noivo reencontra a namorada, tudo numa total inverossimilhança. Há um exagero do
"happy end". O faxineiro gay
apaixonado pela atriz de
Hollywood realiza seus sonhos,
que são muitos. Tudo dá certo.
Percebemos logo que há algo
de errado quando tudo dá tão
certo assim. Nem a Globo seria
capaz de tanto. Mas aí é que
"For All" mostra a que veio. Na
verdade, brinca com o eterno
otimismo nacional. Mas transforma esse otimismo em paródia do otimismo americano.
Segue a forma da Hollywood
dos anos 40, para aplicá-la, de
modo inverossímil e divertido,
na capital do Rio Grande do
Norte.
Esse otimismo paródico do
enredo só se sustenta à medida
que trata os brasileiros segundo a ótica americana: simpáticos, inofensivos, infantis, dóceis e interesseiros. Coisa que
os brasileiros são, em especial
se vistos sob a ótica americana,
que aliás é a nossa também.
Mas para nós, brasileiros, todo americano é um pouco bobo e simpático, um pouco infantil e interesseiro. Nós infantilizamos os americanos, assim
como eles nos infantilizam.
Nada mais idiota do que um
filme de Hollywood nos anos
40. Sabemos disso. Mas idiotamente nos curvamos ao encanto das atrizes, à ilusão do filme.
"For All" não enaltece a malandragem brasileira, nosso
pretenso ponto de superioridade com relação às potências
dominantes. Brinca com o fascínio que elas exercem sobre
nós. De repente, em Natal,
aparece, num baile, a figura de
Humphrey Bogart (na verdade
não é Humphrey Bogart, é um
ator cômico da Globo). Mas a
ilusão, no filme, prevalece ironicamente. Há uma dupla ingenuidade em jogo: o fascínio
do Brasil pelos Estados Unidos
e o fascínio dos Estados Unidos
pela ingenuidade brasileira.
O único nacionalista em cena é o noivo da mocinha,
abandonado em favor do militar americano. Só que ele reage
mal ao imperialismo. Xinga,
mas se submete covardemente.
Mas não se dá mal no fim da
história.
"For All" termina, assim, numa felicidade geral: tudo dá
certo, todos os problemas se resolvem, um pouco do modo como Fernando Henrique Cardoso encara a globalização. A
câmera fecha no sorriso de
Vargas e Roosevelt, numa foto
dos anos 40. Mas o "happy
end" é totalmente irônico. É
como se o diretor dissesse: "Sabendo que é ilusão apostar no
cinema nacional, resolvi apostar nessa ilusão, já que, sabendo que tudo isso é ilusão, nós
brasileiros podemos ver o
quanto de ilusão alimenta os
americanos. Eles, que são os
donos da ilusão, serão como
vítimas de nossa credulidade,
já que são perceptíveis a falsidade com que nos vêem e a falsidade com que os vemos".
O Brasil é, desse modo, visto
sob a ótica de Hollywood: mas
de uma Hollywood imaginária, brasileira, com a qual vemos sem dor a opressão americana. Vemos essa opressão
brasileiramente, isto é, segundo o otimismo de um "happy
end" ao mesmo tempo tupiniquim e hollywoodiano. Tudo
isso por intermédio da sintaxe
das novelas globais. A falsidade amena desse filme é uma
denúncia corrosiva. "For All"
parece bobo, mas acho que é
inteligentíssimo.
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