São Paulo, quarta, 24 de junho de 1998

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O Brasil ingênuo encontra a bobeira de Hollywood

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Parece uma novela das seis, mas não é. "For All", filme de Luís Carlos Lacerda, tem tantas fragilidades, mostra-se à primeira vista como um produto cultural tão quebradiço e tênue, que até desperta simpatia no espectador. Tudo ali é uma gracinha.
"For All" conta a história de uma linda moça do Rio Grande Norte, noiva de um rapaz de valor. Os dois estão loucos para casar. Ocorre que estamos em plena Segunda Guerra. Estamos nos anos 40. E daí? Daí que em Natal estabeleceu-se uma base militar americana. Toda base militar americana tem soldados loiros e corteses. A mocinha abandona o noivo para se apaixonar pelo americano. O noivo não gosta nem um pouco.
Este é o centro dramático de "For All". Outros subenredos se tramam. O pai da mocinha é sapateiro, veio da Itália, admira Mussolini. Transforma-se num espião do Eixo. Espião inofensivo, claro -já que tudo é inofensivo nesse filme.
Passemos a outro drama. O filho do espião -irmão da noiva do segundo parágrafo- se apaixona por uma bonita moreninha. Acontece que a moreninha é prostituta. E mesmo que queira não poderá largar essa vida: deve US$ 140 ao cafetão. Que é barbeiro também. E o rapaz que gostava da prostituta vai fazer a barba pela primeira vez. E aí...
Bom, como novela das seis já é o bastante. Falta dizer o que, em "For All", não é novela. Em primeiro lugar, toda essa patacoada do enredo, tudo o que há aqui de bobinho e sorridente com covinhas nas bochechas, é tratado com máxima ironia. Com grande inteligência.
O filme na verdade é melancólico. Sabe perfeitamente que imita uma novela das seis. A abertura, usando velhas fotos, velhos cromos turísticos, já é uma obra-prima de ironia. Em vez de ver um avião decolando, por exemplo, o espectador vê aproximações sucessivas de uma mesma imagem, tentando toscamente dar idéia de um aeroplano em movimento.
Percebemos que o diretor está brincando com a precariedade técnica do cinema nacional. E que está brincando, também, com o otimismo do diretor que se acredita capaz de superá-la. Assume a fragilidade. E vai em frente.
Qual o termo de comparação desse diretor provinciano, desse cineasta brasileiro? Claro, o cinema de Hollywood. Ei-lo tentando "fazer cinema", ei-lo tentando montar no Brasil uma "fábrica de ilusões". As ilusões se denunciam, entretanto, dada a fraqueza de nossa economia. Como reagir? Investindo, mais do que nunca, na ilusão.
Ou seja, todos os problemas dramáticos do roteiro recebem as mais incríveis soluções para desaguar num "happy end". O cafetão se mostra generoso, o pai espião se salva por encanto, o noivo reencontra a namorada, tudo numa total inverossimilhança. Há um exagero do "happy end". O faxineiro gay apaixonado pela atriz de Hollywood realiza seus sonhos, que são muitos. Tudo dá certo.
Percebemos logo que há algo de errado quando tudo dá tão certo assim. Nem a Globo seria capaz de tanto. Mas aí é que "For All" mostra a que veio. Na verdade, brinca com o eterno otimismo nacional. Mas transforma esse otimismo em paródia do otimismo americano. Segue a forma da Hollywood dos anos 40, para aplicá-la, de modo inverossímil e divertido, na capital do Rio Grande do Norte.
Esse otimismo paródico do enredo só se sustenta à medida que trata os brasileiros segundo a ótica americana: simpáticos, inofensivos, infantis, dóceis e interesseiros. Coisa que os brasileiros são, em especial se vistos sob a ótica americana, que aliás é a nossa também.
Mas para nós, brasileiros, todo americano é um pouco bobo e simpático, um pouco infantil e interesseiro. Nós infantilizamos os americanos, assim como eles nos infantilizam. Nada mais idiota do que um filme de Hollywood nos anos 40. Sabemos disso. Mas idiotamente nos curvamos ao encanto das atrizes, à ilusão do filme.
"For All" não enaltece a malandragem brasileira, nosso pretenso ponto de superioridade com relação às potências dominantes. Brinca com o fascínio que elas exercem sobre nós. De repente, em Natal, aparece, num baile, a figura de Humphrey Bogart (na verdade não é Humphrey Bogart, é um ator cômico da Globo). Mas a ilusão, no filme, prevalece ironicamente. Há uma dupla ingenuidade em jogo: o fascínio do Brasil pelos Estados Unidos e o fascínio dos Estados Unidos pela ingenuidade brasileira.
O único nacionalista em cena é o noivo da mocinha, abandonado em favor do militar americano. Só que ele reage mal ao imperialismo. Xinga, mas se submete covardemente. Mas não se dá mal no fim da história.
"For All" termina, assim, numa felicidade geral: tudo dá certo, todos os problemas se resolvem, um pouco do modo como Fernando Henrique Cardoso encara a globalização. A câmera fecha no sorriso de Vargas e Roosevelt, numa foto dos anos 40. Mas o "happy end" é totalmente irônico. É como se o diretor dissesse: "Sabendo que é ilusão apostar no cinema nacional, resolvi apostar nessa ilusão, já que, sabendo que tudo isso é ilusão, nós brasileiros podemos ver o quanto de ilusão alimenta os americanos. Eles, que são os donos da ilusão, serão como vítimas de nossa credulidade, já que são perceptíveis a falsidade com que nos vêem e a falsidade com que os vemos".
O Brasil é, desse modo, visto sob a ótica de Hollywood: mas de uma Hollywood imaginária, brasileira, com a qual vemos sem dor a opressão americana. Vemos essa opressão brasileiramente, isto é, segundo o otimismo de um "happy end" ao mesmo tempo tupiniquim e hollywoodiano. Tudo isso por intermédio da sintaxe das novelas globais. A falsidade amena desse filme é uma denúncia corrosiva. "For All" parece bobo, mas acho que é inteligentíssimo.



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