São Paulo, domingo, 24 de julho de 2005

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CRÍTICA

Filosofia entrou de gaiata no "Fantástico"

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

A filosofia , quem diria, acabou no "Fantástico". Semana passada, entre outras várias estréias, o programa dominical passou a exibir "Ser ou Não Ser", quadro que pretende mostrar como "o pensamento pode ser uma viagem fantástica".
Entre uma reportagem que resgatava o significado do grupo Mamonas Assassinas na história da música pop brasileira e outra sobre os dez anos da novela infanto-juvenil "Malhação", receitas de sopas para o inverno, humor e futebol, a Rede Globo achou por bem oferecer também uma pitada de pensamento filosófico. Apresentado pela filósofa Viviane Mosé, o quadro tentou fazer uma introdução do tipo "a filosofia ao alcance de todos" ou "a filosofia, vejam só, pode fazer parte da sua vida".
OK, como intenção. Facilitar, introduzir, explicar e, até mesmo, simplificar não constituem um problema em si nem mesmo quando se está diante de uma disciplina tão complexa como a filosofia. Mas, para além de trazer para um patamar acessível, "Ser ou Não Ser" precisa transformar as questões filosóficas em conteúdo televisivo, e é aí que a vaca vai para o brejo.
Não há dúvida de que o roteiro de um quadro como esse representa um enorme desafio técnico. Como traduzir em imagens concretas, em movimento, com algum tipo de narrativa lógica, a abstração que é a base do pensamento filosófico? "Ser ou Não Ser" opta por duas soluções. No primeiro caso, as imagens ilustram ponto a ponto o texto, ou seja, enquanto o texto fala em catástrofes naturais, a imagem na tela é de um furacão; mais adiante, ao serem mencionadas tragédias humanas, aparece o avião afundando no World Trade Center no 11 de Setembro. A outra solução poderia se chamar de metafórica, ou seja, para falar de perplexidade, indagações diante do desconhecido etc., acompanharam a chegada de um migrante a São Paulo, com suas primeiras impressões. Medo da morte? Fácil: entrevista-se um pára-quedista.
A concretude dos exemplos e a relação quase simplória que estabelecem entre idéia e imagem não permitiram que o texto saísse do chão. Não que tivesse lá muito potencial para fazê-lo -com frases coordenadas e assertivas, tratava-se de dar conta da origem da filosofia, da linguagem e, de quebra, convencer os espectadores de que tudo isso pode ser tão divertido quanto ver os gols da rodada.
"Ser ou Não Ser" pode até se acertar tecnicamente, mas o projeto está, de início, sob suspeita por uma razão de fundo: a televisão é, de certa forma, avessa ao pensamento. O fluxo de imagens sem hierarquia, a linguagem que estabelece sua sintaxe pela alternância de sensações, a ausência de silêncios; tudo isso conspira contra o pensar. O que, aliás, é justamente um dos grandes atrativos da televisão, ou seja, sua capacidade de amortecer o pensamento, fazer esquecer, alienar, é um dos principais motivos de sua enorme popularidade.


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