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CRÍTICA
Filosofia entrou de gaiata no "Fantástico"
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
A filosofia , quem diria,
acabou no "Fantástico". Semana passada, entre outras várias estréias, o programa dominical passou a exibir "Ser ou Não
Ser", quadro que pretende mostrar como "o pensamento pode
ser uma viagem fantástica".
Entre uma reportagem que resgatava o significado do grupo
Mamonas Assassinas na história
da música pop brasileira e outra
sobre os dez anos da novela infanto-juvenil "Malhação", receitas de sopas para o inverno, humor e futebol, a Rede Globo
achou por bem oferecer também
uma pitada de pensamento filosófico. Apresentado pela filósofa
Viviane Mosé, o quadro tentou
fazer uma introdução do tipo "a
filosofia ao alcance de todos" ou
"a filosofia, vejam só, pode fazer
parte da sua vida".
OK, como intenção. Facilitar,
introduzir, explicar e, até mesmo, simplificar não constituem
um problema em si nem mesmo
quando se está diante de uma
disciplina tão complexa como a
filosofia. Mas, para além de trazer para um patamar acessível,
"Ser ou Não Ser" precisa transformar as questões filosóficas em
conteúdo televisivo, e é aí que a
vaca vai para o brejo.
Não há dúvida de que o roteiro
de um quadro como esse representa um enorme desafio técnico. Como traduzir em imagens
concretas, em movimento, com
algum tipo de narrativa lógica, a
abstração que é a base do pensamento filosófico? "Ser ou Não
Ser" opta por duas soluções. No
primeiro caso, as imagens ilustram ponto a ponto o texto, ou
seja, enquanto o texto fala em catástrofes naturais, a imagem na
tela é de um furacão; mais adiante, ao serem mencionadas tragédias humanas, aparece o avião
afundando no World Trade Center no 11 de Setembro. A outra
solução poderia se chamar de
metafórica, ou seja, para falar de
perplexidade, indagações diante
do desconhecido etc., acompanharam a chegada de um migrante a São Paulo, com suas primeiras impressões. Medo da
morte? Fácil: entrevista-se um
pára-quedista.
A concretude dos exemplos e a
relação quase simplória que estabelecem entre idéia e imagem
não permitiram que o texto saísse do chão. Não que tivesse lá
muito potencial para fazê-lo
-com frases coordenadas e assertivas, tratava-se de dar conta
da origem da filosofia, da linguagem e, de quebra, convencer os
espectadores de que tudo isso
pode ser tão divertido quanto ver
os gols da rodada.
"Ser ou Não Ser" pode até se
acertar tecnicamente, mas o projeto está, de início, sob suspeita
por uma razão de fundo: a televisão é, de certa forma, avessa ao
pensamento. O fluxo de imagens
sem hierarquia, a linguagem que
estabelece sua sintaxe pela alternância de sensações, a ausência
de silêncios; tudo isso conspira
contra o pensar. O que, aliás, é
justamente um dos grandes atrativos da televisão, ou seja, sua capacidade de amortecer o pensamento, fazer esquecer, alienar, é
um dos principais motivos de
sua enorme popularidade.
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