São Paulo, segunda, 24 de agosto de 1998

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Clarice, Vinicius, Raul: já temos em quem votar

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

No anúncio ensinando a votar, o TSE formulou uma chapa ideal: Clarice Lispector para deputada federal, Vinicius de Moraes para governador, Raul Seixas para senador, Monteiro Lobato para presidente.
A escolha de artistas mortos não é totalmente inócua. Ela nos faz sonhar com sua ressurreição e, com um pouco de boa vontade, nos leva a imaginar o que aconteceria se fossem eleitos para os cargos anunciados.
Como associar o que sei de Clarice com o que experimentei no Congresso? Qual dos seus contos teria alguma chance de ser concebido naqueles corredores e salões que vemos diariamente na tevê? Clarice não suportaria aqueles gabinetes sem graça, pequenas celas destinadas a nos castigar por qualquer criatividade pretérita.
Detestaria os restaurantes e os bares e, possivelmente, perderia a voz no dia do seu primeiro discurso.
Mas Clarice teria um compromisso histórico: dar apoio ao trabalho do governador Vinicus de Moraes, que dirigiria nosso Estado num bar da esquina da Montenegro com a Prudente de Moraes.
Melhor que ninguém, Clarice conheceria os problemas do querido governador que, em lugar de chefe de gabinete, teria um mâítre e redigiria suas mensagens em versos à espera de serem musicados por Tom Jobim.
Não é dificil imaginar a campanha que os levou ao poder. Clarice apareceu no programa gratuito de tevê encarando um búfalo. Vinicius arrebatou os porteiros de Ipanema com os versos de "Operário em Construção" e sempre terminava seus discursos pedindo "Eh Xangô, vê se me ajuda a chegar".
Toda a vez que vejo a propaganda do TSE, avanço um pouco nessa utopia. Clarice e Vinicius num bar, montando uma agenda de governo, discutindo prioridades: o que fazer com as muito feias? "Bem, as muito feias que me perdoem", diz o governador, incomodado com o barulho da mesa próxima.
É que ao lado dele está sentado todo o escrete paraguaio -um grupo de velhos amigos que diariamente se veste para ir à praia, mas fica preso ao bar, jamais conseguindo pisar a areia.
Tanto o criador do anúncio do TSE como eu sabemos que idéias assim são apenas sonhos inofensivos. Não seria bom talvez para a administração estadual conviver com a sensibilidade de Vinicius? Imaginem quantas Monicas Lewinkys inventariam para ele e quantas ele não inventaria por conta própria?
O assustador é pensar em Clarice e Vinicius numa galeria de políticos, como naquelas fotos antigas. Políticos célebres em sua época tornam-se retratos amarelados e se reduzem a um sobrenome duplo: Barata Coutinho, Paes e Silva, Andrade Tinoco.
Clarice com seu búfalo, Vinicius recitando "Operário em Construção" seriam massacrados pelos marqueteiros. O programa do governador daria um clipe musical e o nosso senador Raul Seixas passaria todo o tempo afirmando que fumou e não tragou e que está tentando uma conciliação milagrosa: passar de maluco beleza para maluco careta.
Voltemos alegremente para Rossi e Maluf, César Maia e Garotinho. Voltemos para nosso programa eleitoral gratuito, com os candidatos sucedendo-se nervosamente, recitando suas frases como se cuspissem uma espinha de peixe.
Na gíria interna, chamamos esses programas em que candidatos apenas anunciam nomes de "tudo japonês".
Cada vez mais me convenço de que a expressão "tudo japonês" é falsa. Foi criada para ressaltar a semelhança das faces dos candidatos.
Mas olhando bem, sobretudo no programa regional, descobrimos coisas maravilhosas nos olhares, nas rugas, na postura. Considero que temos um Parlamento ideal para o fim do século, possivelmente para o próprio fim do mundo.
Foi vetada a apresentação de legendas, como queriam os surdos. Eles devem estar trabalhando intensamente para interpretar olhares, adivinhar histórias de vida em cada face -eles sabem que "tudo japonês" é uma ilusão. Como o sertanejo diante de uma parisiense, para quem, na caatinga, tudo é igual.
Esse espetáculo do programa eleitoral gratuito não tem o meu apoio. Na verdade, lancei um projeto para acabar com ele. No entanto, apareço lá todos os dias, tentando interessar os eleitores. Devo refletir profundamente sobre o que aconteceu comigo, que tipo de loucura me impulsiona e, é claro, investigar se há cura.
Enquanto isso não acontece, vou observar todos os dias os mínimos detalhes em cada rosto. Há uma senhora Murat, creio, que nos impressionou. Ela fica uns três segundos séria e sorri um segundo.
Não é a Clarice Lispector, mas creio que poderia inspirá-la a escrever um conto simples sobre uma senhora que vai se encontrar, pela primeira vez, com uma câmera de televisão.
Seria um encontro breve, cinco segundos, mas capaz de mudar sua vida, pois ela se veria, também pela primeira vez, num vídeo e talvez tivesse uma daquelas visões da velha que faz aniversário e observa sua família em torno da mesa.
Caro redator do TSE: vamos tentar um compromisso. Sai Clarice deputada, entra Clarice crítica de programas eleitorais. Acho que isso ela faria melhor.



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