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Clarice, Vinicius, Raul: já temos em quem votar
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
No anúncio ensinando a votar, o TSE formulou uma chapa ideal: Clarice Lispector para deputada federal, Vinicius
de Moraes para governador,
Raul Seixas para senador,
Monteiro Lobato para presidente.
A escolha de artistas mortos
não é totalmente inócua. Ela
nos faz sonhar com sua ressurreição e, com um pouco de boa
vontade, nos leva a imaginar o
que aconteceria se fossem eleitos para os cargos anunciados.
Como associar o que sei de
Clarice com o que experimentei no Congresso? Qual dos
seus contos teria alguma chance de ser concebido naqueles
corredores e salões que vemos
diariamente na tevê? Clarice
não suportaria aqueles gabinetes sem graça, pequenas celas destinadas a nos castigar
por qualquer criatividade pretérita.
Detestaria os restaurantes e
os bares e, possivelmente, perderia a voz no dia do seu primeiro discurso.
Mas Clarice teria um compromisso histórico: dar apoio
ao trabalho do governador Vinicus de Moraes, que dirigiria
nosso Estado num bar da esquina da Montenegro com a
Prudente de Moraes.
Melhor que ninguém, Clarice
conheceria os problemas do
querido governador que, em
lugar de chefe de gabinete, teria um mâítre e redigiria suas
mensagens em versos à espera
de serem musicados por Tom
Jobim.
Não é dificil imaginar a campanha que os levou ao poder.
Clarice apareceu no programa
gratuito de tevê encarando um
búfalo. Vinicius arrebatou os
porteiros de Ipanema com os
versos de "Operário em Construção" e sempre terminava
seus discursos pedindo "Eh
Xangô, vê se me ajuda a chegar".
Toda a vez que vejo a propaganda do TSE, avanço um
pouco nessa utopia. Clarice e
Vinicius num bar, montando
uma agenda de governo, discutindo prioridades: o que fazer com as muito feias? "Bem,
as muito feias que me perdoem", diz o governador, incomodado com o barulho da mesa próxima.
É que ao lado dele está sentado todo o escrete paraguaio
-um grupo de velhos amigos
que diariamente se veste para
ir à praia, mas fica preso ao
bar, jamais conseguindo pisar
a areia.
Tanto o criador do anúncio
do TSE como eu sabemos que
idéias assim são apenas sonhos
inofensivos. Não seria bom talvez para a administração estadual conviver com a sensibilidade de Vinicius? Imaginem
quantas Monicas Lewinkys inventariam para ele e quantas
ele não inventaria por conta
própria?
O assustador é pensar em
Clarice e Vinicius numa galeria de políticos, como naquelas
fotos antigas. Políticos célebres
em sua época tornam-se retratos amarelados e se reduzem a
um sobrenome duplo: Barata
Coutinho, Paes e Silva, Andrade Tinoco.
Clarice com seu búfalo, Vinicius recitando "Operário em
Construção" seriam massacrados pelos marqueteiros. O programa do governador daria
um clipe musical e o nosso senador Raul Seixas passaria todo o tempo afirmando que fumou e não tragou e que está
tentando uma conciliação milagrosa: passar de maluco beleza para maluco careta.
Voltemos alegremente para
Rossi e Maluf, César Maia e
Garotinho. Voltemos para nosso programa eleitoral gratuito,
com os candidatos sucedendo-se nervosamente, recitando
suas frases como se cuspissem
uma espinha de peixe.
Na gíria interna, chamamos
esses programas em que candidatos apenas anunciam nomes
de "tudo japonês".
Cada vez mais me convenço
de que a expressão "tudo japonês" é falsa. Foi criada para
ressaltar a semelhança das faces dos candidatos.
Mas olhando bem, sobretudo
no programa regional, descobrimos coisas maravilhosas
nos olhares, nas rugas, na postura. Considero que temos um
Parlamento ideal para o fim
do século, possivelmente para
o próprio fim do mundo.
Foi vetada a apresentação de
legendas, como queriam os
surdos. Eles devem estar trabalhando intensamente para interpretar olhares, adivinhar
histórias de vida em cada face
-eles sabem que "tudo japonês" é uma ilusão. Como o sertanejo diante de uma parisiense, para quem, na caatinga, tudo é igual.
Esse espetáculo do programa
eleitoral gratuito não tem o
meu apoio. Na verdade, lancei
um projeto para acabar com
ele. No entanto, apareço lá todos os dias, tentando interessar os eleitores. Devo refletir
profundamente sobre o que
aconteceu comigo, que tipo de
loucura me impulsiona e, é
claro, investigar se há cura.
Enquanto isso não acontece,
vou observar todos os dias os
mínimos detalhes em cada rosto. Há uma senhora Murat,
creio, que nos impressionou.
Ela fica uns três segundos séria
e sorri um segundo.
Não é a Clarice Lispector,
mas creio que poderia inspirá-la a escrever um conto simples sobre uma senhora que vai
se encontrar, pela primeira
vez, com uma câmera de televisão.
Seria um encontro breve, cinco segundos, mas capaz de mudar sua vida, pois ela se veria,
também pela primeira vez,
num vídeo e talvez tivesse uma
daquelas visões da velha que
faz aniversário e observa sua
família em torno da mesa.
Caro redator do TSE: vamos
tentar um compromisso. Sai
Clarice deputada, entra Clarice crítica de programas eleitorais. Acho que isso ela faria
melhor.
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