São Paulo, terça-feira, 24 de setembro de 2002

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FERNANDO BONASSI

Livramento condicional

Fórum. Vara de execuções penais. O farfalhar de teclados, impressoras e arquivos. O calor empurrado pra lá e pra cá por dois ventiladores. Um homem e um funcionário. Um balcão e um processo entre eles. Aberto.
- Ainda residindo com a mãe?
- Mais ou menos, senhor.
- Como assim?
- Como assim que a minha mãe faleceu, senhor.
- Meus pêsames.
- Sim, senhor.
- Com os irmãos, então?
- Mais ou menos, senhor.
- Você só tem essa resposta?
- Depende, senhor.
- Depende do quê?
- Se uma coisa é um pouco, mas não é muito, senhor.
- O senhor me confunde.
- Eu também... quero dizer... às vezes, senhor. Os irmãos ficam indo e vindo. Eu mesmo... bom, deixa isso pra lá. É mais assim que uns dias é e uns dias não é... sabe como é, senhor?
- Não.
- Sim, senhor.
- Seu endereço continua à rua Projetada, número 123?
- Sim, senhor.
- Todo mundo que vêm aqui mora numa "rua Projetada"? Que diabo significa isso?
- Não sei não, senhor.
- É importante conhecer a razão das coisas, sabia?
- Não, senhor.
- Tudo tem razão: os fenômenos naturais, o avanço da história, a produção humana... daí, os nomes também têm razões.
- Sim, senhor... Olha, no caso da rua pode ser porque não tem asfalto e nem esgoto. É mais uma coisa que vai acontecer, mas ainda não foi. Quer dizer: mais ou menos.
- Não creio que seja por isso...
- Sim, senhor.
- O senhor está duvidando de mim?
- Não, senhor.
- Você está trabalhando?
- Sim, senhor.
- Está me dizendo a verdade?
- Como essa luz que nos ilumina, sim, senhor.
- Essa luz que nos ilumina nasce todo dia.
- Não sei, não, senhor.
- Deixemos a filosofia de lado.
- Sim, senhor.
- Quer dizer que o senhor está trabalhando, então?
- Se o senhor quiser que eu jure, eu juro, senhor.
- Não é necessário. Trabalha onde?
- Vendas. Autônomo, senhor.
- Vende o quê?
- Uma porção de coisas, senhor.
- Como assim, "uma porção de coisas"? Tem que ser "alguma coisa".
- Rifas e carnês.
- Pode se saber do quê?
- Fogão, geladeira, carro, viagens, microondas... tem de tudo.
- Ah! E as pessoas lá ganham essas coisas?
- Eu mesmo não conheci ninguém, senhor.
- E os que não ganham?
- No caso dos carnês, recebem o dinheiro de volta com juros, senhor.
- Aposto que esses juros são inferiores aos do mercado.
- Isso eu não sei, não, senhor. Mas se é o que o senhor diz...
- Não sei de tudo, não, mas, embora legais, esses expedientes me cheiram a arapuca para o engodo de inocentes, percebe?
- Sim, senhor.
- Quer dizer que tem gente que acredita nessas coisas?
- Muita gente, sim, senhor...
- Vamos de mal a pior.
- De mal a pior, sim, senhor...
- Eu preferiria que você não repetisse minhas frases.
- Sim, senhor.
- E além das rifas e carnês? O que mais?
- O que aparece... Consórcio de videocassete, por exemplo, senhor.
- Quem compra essa porcaria agora que temos vídeos digitais e televisões a cabo?
- Gente pobre, senhor.
- Muito bem.
O funcionário estende a mão para o homem.
- Identificação, por favor.
O homem tira uma carteira do bolso. O funcionário carimba, assina e devolve.
- Quer dizer que está se reintegrando?
- Sim, senhor.
- Não precisa me chamar de senhor a cada coisa que diz...
- Sim, s... sim.
- Então até o mês que vem, se Deus quiser.
- Se Deus quiser, sim, senhor.



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