São Paulo, sexta-feira, 24 de setembro de 2004

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"AMOR À TARDE"

Eric Rohmer mostra a debilidade da moral burguesa

PAULO SANTOS LIMA
FREE-LANCE PARA A FOLHA

A traição é o momento no qual o ser humano se atira heroicamente na aventura da pulsão sexual, sabendo dos riscos e apostando que o lúdico será mais valioso que a falha moral. Uma falha, que fique claro, a partir do instante que a moral burguesa legislou a monogamia como estrada pavimentada para os relacionamentos. Eis aqui um assunto fertilíssimo para explosões nucleares de opinião e desmoronamentos de certezas, e que Eric Rohmer soube tão bem discutir em "Amor à Tarde".
O cinema deste diretor acredita que as verdades múltiplas no tecido dos filmes os aproximam da vida, o que é um traço da modernidade da nouvelle vague. E a moral, sabe-se, são as rédeas das relações humanas, assunto também freqüente na obra rohmeriana. Aqui aparece Frédéric (Bernard Verley), homem com a vida bem firmada, sócio de um cartório, casado e com dois filhos.
Seus medos repousam no tédio do casamento e na domação dos seus impulsos sexuais, que não são poucos. Estamos em Paris, talhada, como qualquer espaço burguês, na ambigüidade, o que faz as relações ganharem certo estatuto sexual. Frédéric encontra nessas ruas coalhadas de belas mulheres um afago nos seus impulsos adúlteros. Ele criou sua lógica para entender o mundo, que ele sempre rascunha em cada tarde livre que passa lendo ou fazendo compras para debelar o tédio. Aceita a farsa, ou seja, lança olhares às mulheres e mergulha na fantasia onírica sem jamais estuprar seus princípios morais.
Frédéric vê beleza em todas as mulheres, enfim, e como extensão da mulher dele, que ele jura ser a mais bela de todas. Será? Chloé, uma ex-namorada de um amigo, aparece em seu escritório, e vai deixar saliente que não é bem assim. Que o desejo e as cantadas baratas que ele lança ao mulherio são provas de que, sim, ele trairia sua mulher. Chloé (interpretada pela modelo Zouzou), mulher que admite a impulsividade como combustível da vida, vem para pôr em xeque esse mundo postiço, no qual as peças vivem em aparente equilíbrio.
A amizade (secreta) entre Frédéric e esta mulher viceja nos encontros à tarde, quando ele não precisa prestar contas à mulher. A bela amiga sabe usar toda a ambigüidade que o contato entre homem e mulher pode às vezes fazer brotar, e uma atração quase incontrolável vai tomando conta de Frédéric, que leva à frente esse seu "modus operandi" de operar entre o flerte e a fidelidade conjugal. Ela não acredita jamais na palavra, sempre frágil e enganadora, mas sim nas ações. Faz o que dá na telha, sempre, tumultuando a geografia aplainada e burguesa de Frédéric. Pois este correto cidadão que entende a poligamia como sendo a barbárie, precisará de uma resistência sobrenatural para não sucumbir a Chloé, que sabe-se lá por quê começa a seduzi-lo.
É a partir do relacionamento, improvável, entre Frédéric e Chloé que "Amor à Tarde" desenha uma discussão sólida sobre o quanto a moral responde à verdade do homem. Porque a crença de Frédéric não o faz menos instintivo. E ela abusa, como ele, de uma moral própria para se colocar no mundo. A verdade estaria então no abraço raivoso e apaixonado entre o racional e o impensado. E mais uma vez o cinema de Rohmer se aproxima da vida, e sem julgamentos, sobretudo morais.


Amor à Tarde
L'Amour l'Aprés-Midi
    
Direção: Eric Rohmer
Produção: França, 1972
Com: Bernard Verley, Zouzou
Quando: a partir de hoje no Top Cine



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