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Câmera cega reensina a ver
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA
A ma-se ou detesta-se "Dançando no Escuro". O "Cahiers du Cinéma", por exemplo,
famoso guia de cegos da cinefilia,
detestou. Mas críticos são assim:
às vezes não gostam de filmes que
não precisam da crítica.
O ganhador de Cannes 2000 está nessa categoria. Ao final da sessão, espectadores ficam até o final
dos créditos, dando tempo para
as lágrimas secarem. Restam, na
saída, apenas os olhos vermelhos.
Estamos diante de um melodrama da mais pura estirpe, em que
Björk faz uma operária tcheca
destinada à cegueira, que muda
para os EUA e despende todos os
seus esforços no afã de levantar
dinheiro para que o filho não tenha o mesmo destino que ela.
Sobre ela se abaterão todos os
golpes do destino: demissão, roubo, acusação de assassinato etc.
Na virada do século, Lars von
Trier nos propõe uma heroína à
moda de Griffith.
Podia ser um personagem ultrapassado, mas se revela extremamente moderno. Tem um pé no
passado e outro no futuro. Do
passado, ela retira sua paixão pelos musicais, por um mundo harmônico, organizado e visível. Do
futuro, a convicção de que tudo o
que existia a ver já foi visto.
Essa convicção é misteriosa.
Que mundo é esse em que tudo já
foi visto? Um mundo em que tudo
é mostrável, exibível. Ver é, portanto, condenar-se à repetição.
É uma sensação que atinge com
frequência os fãs de cinema (mas
não só), essa de que todas as histórias já foram contadas, de que
esse mundo inteiramente aberto à
imagem já não contém mistérios,
nem aventuras possíveis.
Daí a estratégia de Von Trier ser
a da cegueira. Sua câmera trepidante oferece uma espécie de não-olhar, assim com as cenas musicais de "Dançando no Escuro"
nos privam -pela multiplicidade- de um ponto de vista.
Essa mesma câmera nos conduz
por uma história de três vinténs.
Talvez o bem-sucedido do filme
venha mesmo desse encontro entre uma personagem cega e uma
câmera idem. Se ver é se entregar
ao espetáculo do já visto, que tal
experimentar esse mundo de outra forma, tateando-o, recusando
as sensações empacotadas?
Esse é um filme radical por seu
raciocínio, mas sobretudo por sua
capacidade de nos retirar desse
universo de visibilidade, a um
tempo plena e perversa, em que
nada mais é revelável, pois nos
aprisiona nos discursos cadavéricos, nas presunções que conservamos por reflexo condicionado.
Ao mesmo tempo, ao propor
uma personagem cuja pureza
iguala à das heroínas de outros
tempos, esse filme nos conduz ao
mundo pós-visível, digamos assim. Se o visível tornou-se insignificante, não ver equivale a uma recusa. À possibilidade de criar uma
nova visualidade.
Por que, então, as pessoas choram com tanta facilidade? Será
por conta das dores inverossímeis
de Björk? Pode ser. Talvez seja de
saudade das emoções que um dia
se mostraram a nós com inteireza,
hoje abafadas pelo cinismo e pela
desilusão. Ver é uma faculdade
que está em nós, antes de estar nas
imagens. Ou seja, ver é uma faculdade que tem de ser buscada dentro de nós -é disso que nos lembra esse filme.
Dançando no Escuro
Dancer in the Dark
Direção: Lars von Trier
Produção: Dinamarca/Suécia, 2000
Com: Björk, Catherine Deneuve
Quando: a partir de hoje nos cines
Cinearte, Eldorado, Espaço Unibanco,
Jardim Sul, Sala UOL e Pátio Higienópolis
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