São Paulo, sábado, 24 de novembro de 2001

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DANÇA/"AQUILO DE QUE SOMOS FEITOS"

Espetáculo se reveste de clima dos anos 70

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Em meio ao público que espera o início do espetáculo surgem três mulheres nuas. Entram calmamente e explicam às pessoas como se sentar no espaço da sala para ver melhor.
Sem música, esses corpos femininos então começam a se movimentar lentamente, formando esculturas vivas. É a primeira cena de "Aquilo de que Somos Feitos", da coreógrafa Lia Rodrigues, em cartaz no Itaú Cultural.
O espetáculo, na verdade, é uma adaptação da coreografia que estreou no ano passado. Interage agora com a exposição "Anos 70", do Itaú, que parece feita sob medida para acomodar essa nova forma, ao mesmo tempo radical e delicada, de "happening".
Subindo a escada rumo à segunda cena, o público (vestido) passa por uma série de bailarinos imóveis (pelados). A sensação é inusitada: somos nós que nos sentimos estranhos, em meio à naturalidade dos corpos. Chegando ao segundo andar: dois homens que se unem pelas cabeças e se transformam num outro corpo, um siamês lenta e fantasticamente plástico, como nas esculturas de Ernesto Neto.
A superexposição do corpo nu chega ao máximo numa fila de bailarinos, das mais diversas estaturas e pesos, que ficam sucessivamente de costas, de frente, de um lado, de outro e de bruços no chão. Nosso próprio corpo se espelha e se revela na diversidade desses corpos iguais e diferentes.
Bem no clima dos anos 70, a segunda parte do espetáculo, com todos agora vestidos e falantes, ganha um tom de protesto: slogans, nomes de grife, cidades em guerra são recitados com tons variados de indignação.
O espetáculo só se fortalece pela sintonia com a exposição ao redor. Imagens dos presidentes Médici, Geisel e Figueiredo fazem pano de fundo para um quarteto de "resistência urbana", com acentos de rua; Delfim Netto faz sombra para um solo de contestação antiglobalização; Gerson vibrando na final da Copa de 70 e a marchinha "Pra Frente, Brasil" fazem contraponto às barbaridades de agora, invocadas e exorcizadas pela energia carioca dos dez bailarinos.
Para Lia Rodrigues, na voz de muitos, arte "é para inquietar", é "uma reserva de contestação", é "uma teoria viva do corpo vivo". Nem toda platéia vai aceitar a parte que lhe cabe nesse confronto. E nem tudo, talvez, esteja resolvido com o mesmo grau de invenção e eloquência. Mas o mínimo que se deve reconhecer, com a devida reverência, é que nesses corpos, tão concretos e tão expostos, em sua natureza e seus disfarces, a coreógrafa encontrou uma voz para a indignação dos nossos dias. Não existe eco melhor para o legado dos anos 70.


Aquilo de que Somos Feitos
   
Onde: Itaú Cultural (av. Paulista, 149, São Paulo, tel. 0/xx/11/3268-1700)
Quando: de qua. a sáb., às 21h, e dom., às 19h; até dia 2/12
Quanto: entrada franca (ingressos com uma hora de antecedência)



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