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DANÇA/"AQUILO DE QUE SOMOS FEITOS"
Espetáculo se reveste de clima dos anos 70
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
Em meio ao público que espera o início do espetáculo surgem três mulheres nuas. Entram
calmamente e explicam às pessoas como se sentar no espaço da
sala para ver melhor.
Sem música, esses corpos femininos então começam a se movimentar lentamente, formando esculturas vivas. É a primeira cena
de "Aquilo de que Somos Feitos",
da coreógrafa Lia Rodrigues, em
cartaz no Itaú Cultural.
O espetáculo, na verdade, é uma
adaptação da coreografia que estreou no ano passado. Interage
agora com a exposição "Anos 70",
do Itaú, que parece feita sob medida para acomodar essa nova
forma, ao mesmo tempo radical e
delicada, de "happening".
Subindo a escada rumo à segunda cena, o público (vestido) passa
por uma série de bailarinos imóveis (pelados). A sensação é inusitada: somos nós que nos sentimos
estranhos, em meio à naturalidade dos corpos. Chegando ao segundo andar: dois homens que se
unem pelas cabeças e se transformam num outro corpo, um siamês lenta e fantasticamente plástico, como nas esculturas de Ernesto Neto.
A superexposição do corpo nu
chega ao máximo numa fila de
bailarinos, das mais diversas estaturas e pesos, que ficam sucessivamente de costas, de frente, de
um lado, de outro e de bruços no
chão. Nosso próprio corpo se espelha e se revela na diversidade
desses corpos iguais e diferentes.
Bem no clima dos anos 70, a segunda parte do espetáculo, com
todos agora vestidos e falantes,
ganha um tom de protesto: slogans, nomes de grife, cidades em
guerra são recitados com tons variados de indignação.
O espetáculo só se fortalece pela
sintonia com a exposição ao redor. Imagens dos presidentes Médici, Geisel e Figueiredo fazem pano de fundo para um quarteto de
"resistência urbana", com acentos de rua; Delfim Netto faz sombra para um solo de contestação
antiglobalização; Gerson vibrando na final da Copa de 70 e a marchinha "Pra Frente, Brasil" fazem
contraponto às barbaridades de
agora, invocadas e exorcizadas
pela energia carioca dos dez bailarinos.
Para Lia Rodrigues, na voz de
muitos, arte "é para inquietar", é
"uma reserva de contestação", é
"uma teoria viva do corpo vivo".
Nem toda platéia vai aceitar a parte que lhe cabe nesse confronto. E
nem tudo, talvez, esteja resolvido
com o mesmo grau de invenção e
eloquência. Mas o mínimo que se
deve reconhecer, com a devida reverência, é que nesses corpos, tão
concretos e tão expostos, em sua
natureza e seus disfarces, a coreógrafa encontrou uma voz para a
indignação dos nossos dias. Não
existe eco melhor para o legado
dos anos 70.
Aquilo de que Somos Feitos
Onde: Itaú Cultural (av. Paulista, 149,
São Paulo, tel. 0/xx/11/3268-1700)
Quando: de qua. a sáb., às 21h, e dom.,
às 19h; até dia 2/12
Quanto: entrada franca (ingressos com
uma hora de antecedência)
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