São Paulo, Sexta-feira, 24 de Dezembro de 1999


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"MORTE EM VENEZA"

Dois seres, dois corpos e seus sonhos

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Os filmes de Luchino Visconti normalmente parecem orientados pela cenografia e, sobretudo, por seus objetos decorativos. Por mais grave que seja o problema tratado (digamos, a ascensão do nazismo em "Os Deuses Malditos"), fica a impressão de que a posição das almofadas da sala são mais importantes para Visconti.
Como a ópera é uma influência importante em sua obra, a música é o segundo elemento-chave, embora quase sempre apareça submetido à cenografia (mesmo em "Senso" isso acontece). Desde aí, podemos ver "Morte em Veneza" como um filme que se desvia desse padrão, pois a música será o centro da ação, já por conta de seu protagonista, um músico.
Na história, o velho maestro Archenbach (Dirk Bogarde) chega a um hotel luxuoso de Veneza. Tem-se a impressão de que o mundo lhe é indiferente. Mesmo a música dá a impressão de ser mais uma lembrança, um reflexo do passado, do que algo que diz respeito a sua existência presente.
Ou seja, o maestro parece um morto-vivo, pelo menos até ser tocado pela beleza do adolescente Tadzio (Bjorn Andressen). Beleza perturbadora, já que Tadzio é, na aparência, um andrógino, não conseguimos vê-lo nem como homem nem como mulher.
E a visão apaixonante de Tadzio como que tira o velho Archenbach do túmulo. Provisoriamente, é certo. Mas o que é a vida senão adiamento da morte e desejo de permanecer entre os vivos?
Desde que Archenbach vê Tadzio, a música toma conta do filme. Ela dita o ritmo e a respiração das imagens. Ela parece orientar os movimentos de "zum" que parecem aspirar o espaço em busca do adolescente. Raras vezes uma música "colou" de modo tão radical à imagem quanto a música de Mahler a esse filme.
Ou talvez seja melhor dizer que, nesse caso, a música é que comanda a imagem, os movimentos da câmera e dos personagens, os gestos de sua vida e de sua morte.
Com frequência, os filmes trazem uma ou duas sequências em que isso acontece. "O Homem que Sabia Demais", de Hitchcock, por exemplo, parece existir em função da cena do concerto no Albert Hall. Já em "Morte em Veneza", a música ponteia o filme inteiro, como que orientando o último suspiro desejante do maestro.
Ao mesmo tempo a idéia obsessiva da morte -tão presente quanto a do desejo- indica tudo o que aproxima e separa irremediavelmente dois seres, dois corpos e seus sonhos.
Nisso "Morte em Veneza" é um filme magnífico: na arte de sugerir a união entre coisas não passíveis de unificação -juventude e velhice, desejo do sujeito e desejo do outro, vida e morte. Mas, como este também é um filme de olhares, Visconti explora até o osso essa propriedade do olhar (que também é do cinema), de num mesmo segundo dizer e desdizer, negar e afirmar -isso que, em uma palavra, também se pode chamar de mistério.


Avaliação:     

Filme: Morte em Veneza (Morte a Venezia) Diretor: Luchino Visconti Produção: Itália, 1971 Com: Dirk Bogarde e Silvana Mangano Quando: estréia amanhã no Cinesesc





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