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MARCELO COELHO
A graça dos santos populares
Um presentinho de Natal bonito, mesmo para quem não
for religioso, é a coleção "Santos
Populares do Brasil", que a editora Planeta acaba de publicar. São
livros de bolso, com pouco mais
de 40 páginas, muito bem ilustrados. Já saíram os volumes dedicados a Santo Expedito, aos Reis
Magos, a Santa Luzia, a São Sebastião e a Nossa Senhora Aparecida.
A pesquisa de imagens, feita por
Andréa Villela de Almeida, é preciosa -embora não muito extensa, dadas as dimensões de cada livro. O de Santa Luzia, por exemplo, traz a reprodução de um quadro clássico de Francesco Pagani,
mas também os convencionais
"santinhos" da mártir, além de
fotos variadas. Passo os olhos por
uma embalagem de marmelada
que homenageia a santa, por ex-votos do Museu de Arte Sacra de
Angra dos Reis, pelas insígnias de
uma ótica no Rio Grande do Norte e de uma oficina mecânica em
Goiás, pela capa de uma história
em quadrinhos feita em Mossoró
e, claro, por algumas imagens
modernas, de plástico ou resina, à
venda em qualquer loja de artigos
religiosos.
O artista plástico Alex Cerveny
fez para cada santo uma pintura
em estilo "naïf", além de assinar o
lindo desenho das letras maiúsculas utilizadas na abertura dos livros. O "A" com que começa o
texto sobre Nossa Senhora Aparecida aproveita no vértice a forma
triangular da Padroeira, encontrando espaço para deixar dois
minúsculos pescadores de joelhos,
mais embaixo, junto aos pés da
letra.
Os capítulos contando a história dos santos também assumem
um tom deliberadamente ingênuo. Suprimiram-se quaisquer
piscadelas e ironias para o leitor
sofisticado, mas é certo que não
estamos diante de um narrador
devoto.
Em 1717, os pescadores João Alves e Felipe Pedroso colheram na
rede a imagem de uma Nossa Senhora. Eis como o livro narra o
episódio.
"Era uma imagem de barro escuro, suja de limo. Dava para perceber que era mesmo de santa. Tinha as dobras de um manto, as
mãos estavam postas em oração e
via-se a carinha de um anjo junto
a seus pés. Mas ela não tinha cabeça."
João Alves lança a rede novamente, e...
"Quando a puxou, tirou uma
coisinha delicada de sua malha.
Era uma cabecinha. João a levou
para mais perto dos olhos. Tinha
um penteado com tranças, flores
em relevo e um diadema na testa
(...)."
E a pescaria, que não estava
sendo boa, torna-se um sucesso.
Quando puxam novamente as redes, os pescadores vêem que "dezenas de peixinhos prateados se
debatiam entre suas malhas. Domingos soltou um grito, atirando
o chapéu para cima. Lançaram as
redes mais uma, duas, três vezes, e
eram tantos os peixes que eles ficaram com medo de afundar as
canoas."
É nítido o tom "naïf" da narração. O milagre haveria de ter
mais impacto, e a ceia de ser mais
farta se peixes enormes tivessem
acorrido ao barco. Mas, quando o
autor fala de "dezenas de peixinhos prateados", não está descrevendo uma cena "real". É como
se, na verdade, estivesse descrevendo um quadrinho, uma pintura popular, onde alguns toques de
tinta prateada já são suficientes
para representar a vasta pescaria.
Tudo parece, assim, diminuir
de tamanho, buscando a graça do
infantil, do simples, do popular. O
livro sobre os Reis Magos cita
uma crônica de Guimarães Rosa
sobre o Natal em que o autor lembra o presépio da casa de sua avó:
"Geografia miudamente construída, que deslumbrava, à alma,
os olhos do menino míope".
As crianças não podiam mexer
no presépio. Mas as imagens dos
Reis Magos eram exceção. Como
estavam indo visitar o Menino Jesus em Belém, "de dia em dia, deviam avançar um tanto, em sua
estrada, branca na montanha.
Cada um de nós, pequenos, queria o direito de pegar neles e mudá-los dos quotidianos centímetros". Funcionavam, percebe-se,
como brinquedos.
Qualquer criança sabe perfeitamente que seu ursinho de pelúcia,
sua boneca, seu dinossauro de
borracha não têm vida real. Trata-se não de "imaginar" literalmente que estejam vivos, mas de
"fazer de conta", de encenar, de
representar um pequeno teatro
no qual eles pudessem viver. Daí
que em inglês e em francês, por
exemplo, um único verbo ("to
play"/ "jouer") designa ao mesmo
tempo "brincar" e "atuar".
As histórias e imagens reproduzidas em "Santos Populares do
Brasil" tampouco se situam num
universo a ser aceito ou rejeitado
em termos literais. Certos prodígios narrados numa história como a de Santa Luzia não são apenas difíceis de acreditar. O difícil
é acreditar que alguém acredite
neles. Mas, precisamente, não está em jogo "acreditar" ou "desacreditar" - a questão é de "representação" nos diversos sentidos que a palavra possa ter: tanto
a necessidade de traduzir visualmente uma idéia quanto o impulso de encenar uma sequência de
ações profiláticas e exercícios de
exorcismo.
Do mesmo modo, para grandes
parcelas da população brasileira,
parece mais exato falar de "religiosidade" do que de "religião", e
os livrinhos organizados por Marcelo Macca e Andréa de Almeida
parecem celebrar o que há de infantil, de ingênuo e natalino nessa atitude. Que assim seja.
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