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São Paulo, quarta-feira, 24 de dezembro de 2003

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MARCELO COELHO

A graça dos santos populares

Um presentinho de Natal bonito, mesmo para quem não for religioso, é a coleção "Santos Populares do Brasil", que a editora Planeta acaba de publicar. São livros de bolso, com pouco mais de 40 páginas, muito bem ilustrados. Já saíram os volumes dedicados a Santo Expedito, aos Reis Magos, a Santa Luzia, a São Sebastião e a Nossa Senhora Aparecida.
A pesquisa de imagens, feita por Andréa Villela de Almeida, é preciosa -embora não muito extensa, dadas as dimensões de cada livro. O de Santa Luzia, por exemplo, traz a reprodução de um quadro clássico de Francesco Pagani, mas também os convencionais "santinhos" da mártir, além de fotos variadas. Passo os olhos por uma embalagem de marmelada que homenageia a santa, por ex-votos do Museu de Arte Sacra de Angra dos Reis, pelas insígnias de uma ótica no Rio Grande do Norte e de uma oficina mecânica em Goiás, pela capa de uma história em quadrinhos feita em Mossoró e, claro, por algumas imagens modernas, de plástico ou resina, à venda em qualquer loja de artigos religiosos.
O artista plástico Alex Cerveny fez para cada santo uma pintura em estilo "naïf", além de assinar o lindo desenho das letras maiúsculas utilizadas na abertura dos livros. O "A" com que começa o texto sobre Nossa Senhora Aparecida aproveita no vértice a forma triangular da Padroeira, encontrando espaço para deixar dois minúsculos pescadores de joelhos, mais embaixo, junto aos pés da letra.
Os capítulos contando a história dos santos também assumem um tom deliberadamente ingênuo. Suprimiram-se quaisquer piscadelas e ironias para o leitor sofisticado, mas é certo que não estamos diante de um narrador devoto.
Em 1717, os pescadores João Alves e Felipe Pedroso colheram na rede a imagem de uma Nossa Senhora. Eis como o livro narra o episódio.
"Era uma imagem de barro escuro, suja de limo. Dava para perceber que era mesmo de santa. Tinha as dobras de um manto, as mãos estavam postas em oração e via-se a carinha de um anjo junto a seus pés. Mas ela não tinha cabeça."
João Alves lança a rede novamente, e...
"Quando a puxou, tirou uma coisinha delicada de sua malha. Era uma cabecinha. João a levou para mais perto dos olhos. Tinha um penteado com tranças, flores em relevo e um diadema na testa (...)."
E a pescaria, que não estava sendo boa, torna-se um sucesso. Quando puxam novamente as redes, os pescadores vêem que "dezenas de peixinhos prateados se debatiam entre suas malhas. Domingos soltou um grito, atirando o chapéu para cima. Lançaram as redes mais uma, duas, três vezes, e eram tantos os peixes que eles ficaram com medo de afundar as canoas."
É nítido o tom "naïf" da narração. O milagre haveria de ter mais impacto, e a ceia de ser mais farta se peixes enormes tivessem acorrido ao barco. Mas, quando o autor fala de "dezenas de peixinhos prateados", não está descrevendo uma cena "real". É como se, na verdade, estivesse descrevendo um quadrinho, uma pintura popular, onde alguns toques de tinta prateada já são suficientes para representar a vasta pescaria.
Tudo parece, assim, diminuir de tamanho, buscando a graça do infantil, do simples, do popular. O livro sobre os Reis Magos cita uma crônica de Guimarães Rosa sobre o Natal em que o autor lembra o presépio da casa de sua avó: "Geografia miudamente construída, que deslumbrava, à alma, os olhos do menino míope".
As crianças não podiam mexer no presépio. Mas as imagens dos Reis Magos eram exceção. Como estavam indo visitar o Menino Jesus em Belém, "de dia em dia, deviam avançar um tanto, em sua estrada, branca na montanha. Cada um de nós, pequenos, queria o direito de pegar neles e mudá-los dos quotidianos centímetros". Funcionavam, percebe-se, como brinquedos.
Qualquer criança sabe perfeitamente que seu ursinho de pelúcia, sua boneca, seu dinossauro de borracha não têm vida real. Trata-se não de "imaginar" literalmente que estejam vivos, mas de "fazer de conta", de encenar, de representar um pequeno teatro no qual eles pudessem viver. Daí que em inglês e em francês, por exemplo, um único verbo ("to play"/ "jouer") designa ao mesmo tempo "brincar" e "atuar".
As histórias e imagens reproduzidas em "Santos Populares do Brasil" tampouco se situam num universo a ser aceito ou rejeitado em termos literais. Certos prodígios narrados numa história como a de Santa Luzia não são apenas difíceis de acreditar. O difícil é acreditar que alguém acredite neles. Mas, precisamente, não está em jogo "acreditar" ou "desacreditar" - a questão é de "representação" nos diversos sentidos que a palavra possa ter: tanto a necessidade de traduzir visualmente uma idéia quanto o impulso de encenar uma sequência de ações profiláticas e exercícios de exorcismo.
Do mesmo modo, para grandes parcelas da população brasileira, parece mais exato falar de "religiosidade" do que de "religião", e os livrinhos organizados por Marcelo Macca e Andréa de Almeida parecem celebrar o que há de infantil, de ingênuo e natalino nessa atitude. Que assim seja.

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