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Diretor de "Dogville", Lars von Trier fala de seu filme, "fábula sobre as mentes estreitas", que "imperam nos EUA"
Choque e pavor
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
Se há algo de podre nos EUA,
quem mostra é um dinamarquês.
Para entender tanto "Dogville",
o espetacular filme de pouco mais
de três horas e nove episódios em
cartaz atualmente em São Paulo,
quanto seu autor, Lars von Trier,
e o império norte-americano é
preciso ter em mente a seguinte
informação: o diretor da obra
nunca esteve nos EUA.
Mais: ele não pretende visitar os
EUA. Primeiro, porque Lars von
Trier morre de medo de andar de
avião, um medo doentio que o faz
evitar mesmo viagens curtas como as de Copenhague, onde vive
e de onde falou à Folha por telefone no começo da semana, para
Estocolmo, na vizinha Suécia.
(O diretor de 47 anos, um dos
autores do Dogma, movimento
do meio dos anos 90 que pregava
uma volta aos valores básicos pelo
cinema, com a câmara na mão e
sem tantos recursos técnicos e
efeitos especiais, é dado a ataques
de pânico. Para suprir a ausência
de emoções fortes em sua vida e
por recomendação de sua mulher, comprou um Porsche. De
vez em quando, pisa fundo.)
Segundo, porque ele não quer
que a realidade afete seu trabalho.
"É como o pintor que prefere fazer seus quadros de cabeça", define. "Os EUA estão em tudo o que
eu faço, na TV de minha casa, nos
cinemas de meu bairro, nos jornais que leio pela manhã. Não é
necessário juntar a estas a experiência de visitar o país."
Mesmo assim -ou por isso
mesmo-, não há filme recente
que capture tanto a alma de um
povo quanto o seu "Dogville" faz
com o norte-americano. Ambientado na cidadezinha fictícia do título, aparentemente nos anos 30,
durante a Depressão, conta a saga
de Grace (Nicole Kidman), uma
mulher delicada, com pele cor-de-neve e gestos suaves.
A princípio, o espectador e os
moradores da cidade pensam que
ela vem de ser perseguida por
gângsteres. Nessa frágil condição
e sem ter mais para onde ir
-Dogville se espalha ao longo de
um beco que termina numa montanha intransponível, e a mentalidade de beco move seus habitantes-, Grace é aceita na cidade, a
um custo pessoal cada vez maior.
Metáfora
Orientada pelo iluminista Tom
Edison (Paul Bethany), que cuida
de levar o pouco de ilustração para o vilarejo e logo se apaixona
por ela, a garota começa a realizar
pequenos trabalhos como maneira de pagar por sua estada ali.
Conforme o assédio da polícia e
dos gângsteres cresce entre os
moradores, estes passam a exigir
cada vez mais da fugitiva; no final,
Grace andará acorrentada a uma
roda e será estuprada todas as
noites pelos homens locais.
Críticos viram aí uma metáfora
para os Anos Bush; outros ligaram a história de uma graça (Grace) concedida a um povo, que a
ignora e a rejeita, ao Novo Testamento, impressão reforçada pelo
final do filme. Trier não vê referência necessariamente ao governo de quem ele chama de "Bush
Filho", mas até enxerga certa lógica na comparação bíblica.
"Mas não posso controlar o que
os críticos pensam", diz ele. "Na
verdade, não consigo controlar
nem mesmo o que eu penso sobre
o filme. Hoje, digo que é uma fábula sobre as mentes estreitas, e
que estas mentes estreitas imperam nos EUA atual. No plano
concreto, porém, tirei a trama toda da música "Jenny e os Piratas"
[da "Ópera dos Três Vinténs", de
Bertolt Brecht e Kurt Weill]."
É brechtiano mesmo o clima,
reforçado pelo cenário -ou ausência dele. Trier colocou toda a
cidade riscada de giz num chão de
quadro negro, com alguns objetos
pontuais e atores vestidos com
roupas das primeiras décadas do
século passado. A exceção são os
carros, também de época, que
aparecem na sua plenitude -afinal, a cidadezinha pode ser qualquer uma, mas é uma legítima cidadezinha norte-americana.
Não é a primeira investida do
dinamarquês contra o Grande
Império do Norte. Em "Dançando no Escuro", a imigrante européia interpretada por Björk também ia sofrendo cada vez mais
nas mãos dos gringos à medida
que ia avançando sua cegueira e a
montagem escolar que comandava de "A Noviça Rebelde".
A crítica local arrasou o filme.
As revistas de celebridade optaram por colocar ruído na comunicação falando do estresse que
houve no set de filmagem entre o
diretor e sua equipe, notadamente com a cantora islandesa, que
saiu de "Dançando" dizendo que
nunca mais faria outro filme. Desta vez, não foi diferente.
"Animais"
"Dogville" ganhou mais centímetros e minutos no ar nos EUA
por conta do atrito que teria ocorrido entre Trier e Nicole Kidman.
Numa conversa recente entre o
diretor e o grande Paul Thomas
Anderson, autor de "Magnólia" e
"Boogie Nights", o dinamarquês
parafraseia Alfred Hitchcock e diz
que "atores são como animais".
Pergunto se ele pensava em Nicole e Björk quando falou aquilo.
Ele ri e explica: "Quis dizer mais
como entidades indomáveis, que
devem ser respeitadas como tal,
mas que precisam da guia de um
diretor". De qualquer maneira, a
potranca ruiva declarou que não
mais fará o resto da trilogia que
"Dogville" inaugura e que foi escrita por Trier tendo ela como
personagem feminina central.
"Realmente, a agenda de Nicole
é impossível e ela só deve participar de um dos dois próximos, se
tanto", atenua. São eles "Manderlay", que começa minutos depois
de terminado "Dogville", tocará
na questão do racismo norte-americano e deve ser rodado em
2006, e "Wasington", ainda em
projeto. Ele conta que esperou
uma vez pela atriz, quase um ano,
mas que não faria isso de novo.
Por que, por ter virado um diretor-celebridade, premiado em
Cannes e indicado ao Oscar? "Sou
uma pessoa comum, não sou uma
celebridade nem em meu país",
disse. Meia verdade. Pelo menos
pelo critério da lista telefônica de
Copenhague, seu nome é mesmo
bem comum: há 47 Trier e 352
Lars; o "von" não estava em sua
certidão de nascimento, o diretor
inventou durante a faculdade de
cinema e nunca mais abandonou.
Por fim, pergunto se ele não
acha irônico o fato de estarmos,
um jornalista brasileiro e um diretor dinamarquês, conversando
em inglês sobre um filme que ataca justamente os Estados Unidos.
Ele pede desculpa por não falar
espanhol ("excuse me?") e ri.
"Você acha que Bush Filho vai
querer me bombardear por isso?"
É improvável, mas não necessariamente impossível.
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