São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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Diretor de "Dogville", Lars von Trier fala de seu filme, "fábula sobre as mentes estreitas", que "imperam nos EUA"

Choque e pavor

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

Se há algo de podre nos EUA, quem mostra é um dinamarquês.
Para entender tanto "Dogville", o espetacular filme de pouco mais de três horas e nove episódios em cartaz atualmente em São Paulo, quanto seu autor, Lars von Trier, e o império norte-americano é preciso ter em mente a seguinte informação: o diretor da obra nunca esteve nos EUA.
Mais: ele não pretende visitar os EUA. Primeiro, porque Lars von Trier morre de medo de andar de avião, um medo doentio que o faz evitar mesmo viagens curtas como as de Copenhague, onde vive e de onde falou à Folha por telefone no começo da semana, para Estocolmo, na vizinha Suécia.
(O diretor de 47 anos, um dos autores do Dogma, movimento do meio dos anos 90 que pregava uma volta aos valores básicos pelo cinema, com a câmara na mão e sem tantos recursos técnicos e efeitos especiais, é dado a ataques de pânico. Para suprir a ausência de emoções fortes em sua vida e por recomendação de sua mulher, comprou um Porsche. De vez em quando, pisa fundo.)
Segundo, porque ele não quer que a realidade afete seu trabalho. "É como o pintor que prefere fazer seus quadros de cabeça", define. "Os EUA estão em tudo o que eu faço, na TV de minha casa, nos cinemas de meu bairro, nos jornais que leio pela manhã. Não é necessário juntar a estas a experiência de visitar o país."
Mesmo assim -ou por isso mesmo-, não há filme recente que capture tanto a alma de um povo quanto o seu "Dogville" faz com o norte-americano. Ambientado na cidadezinha fictícia do título, aparentemente nos anos 30, durante a Depressão, conta a saga de Grace (Nicole Kidman), uma mulher delicada, com pele cor-de-neve e gestos suaves.
A princípio, o espectador e os moradores da cidade pensam que ela vem de ser perseguida por gângsteres. Nessa frágil condição e sem ter mais para onde ir -Dogville se espalha ao longo de um beco que termina numa montanha intransponível, e a mentalidade de beco move seus habitantes-, Grace é aceita na cidade, a um custo pessoal cada vez maior.

Metáfora
Orientada pelo iluminista Tom Edison (Paul Bethany), que cuida de levar o pouco de ilustração para o vilarejo e logo se apaixona por ela, a garota começa a realizar pequenos trabalhos como maneira de pagar por sua estada ali. Conforme o assédio da polícia e dos gângsteres cresce entre os moradores, estes passam a exigir cada vez mais da fugitiva; no final, Grace andará acorrentada a uma roda e será estuprada todas as noites pelos homens locais.
Críticos viram aí uma metáfora para os Anos Bush; outros ligaram a história de uma graça (Grace) concedida a um povo, que a ignora e a rejeita, ao Novo Testamento, impressão reforçada pelo final do filme. Trier não vê referência necessariamente ao governo de quem ele chama de "Bush Filho", mas até enxerga certa lógica na comparação bíblica.
"Mas não posso controlar o que os críticos pensam", diz ele. "Na verdade, não consigo controlar nem mesmo o que eu penso sobre o filme. Hoje, digo que é uma fábula sobre as mentes estreitas, e que estas mentes estreitas imperam nos EUA atual. No plano concreto, porém, tirei a trama toda da música "Jenny e os Piratas" [da "Ópera dos Três Vinténs", de Bertolt Brecht e Kurt Weill]."
É brechtiano mesmo o clima, reforçado pelo cenário -ou ausência dele. Trier colocou toda a cidade riscada de giz num chão de quadro negro, com alguns objetos pontuais e atores vestidos com roupas das primeiras décadas do século passado. A exceção são os carros, também de época, que aparecem na sua plenitude -afinal, a cidadezinha pode ser qualquer uma, mas é uma legítima cidadezinha norte-americana.
Não é a primeira investida do dinamarquês contra o Grande Império do Norte. Em "Dançando no Escuro", a imigrante européia interpretada por Björk também ia sofrendo cada vez mais nas mãos dos gringos à medida que ia avançando sua cegueira e a montagem escolar que comandava de "A Noviça Rebelde".
A crítica local arrasou o filme. As revistas de celebridade optaram por colocar ruído na comunicação falando do estresse que houve no set de filmagem entre o diretor e sua equipe, notadamente com a cantora islandesa, que saiu de "Dançando" dizendo que nunca mais faria outro filme. Desta vez, não foi diferente.

"Animais"
"Dogville" ganhou mais centímetros e minutos no ar nos EUA por conta do atrito que teria ocorrido entre Trier e Nicole Kidman. Numa conversa recente entre o diretor e o grande Paul Thomas Anderson, autor de "Magnólia" e "Boogie Nights", o dinamarquês parafraseia Alfred Hitchcock e diz que "atores são como animais".
Pergunto se ele pensava em Nicole e Björk quando falou aquilo. Ele ri e explica: "Quis dizer mais como entidades indomáveis, que devem ser respeitadas como tal, mas que precisam da guia de um diretor". De qualquer maneira, a potranca ruiva declarou que não mais fará o resto da trilogia que "Dogville" inaugura e que foi escrita por Trier tendo ela como personagem feminina central.
"Realmente, a agenda de Nicole é impossível e ela só deve participar de um dos dois próximos, se tanto", atenua. São eles "Manderlay", que começa minutos depois de terminado "Dogville", tocará na questão do racismo norte-americano e deve ser rodado em 2006, e "Wasington", ainda em projeto. Ele conta que esperou uma vez pela atriz, quase um ano, mas que não faria isso de novo.
Por que, por ter virado um diretor-celebridade, premiado em Cannes e indicado ao Oscar? "Sou uma pessoa comum, não sou uma celebridade nem em meu país", disse. Meia verdade. Pelo menos pelo critério da lista telefônica de Copenhague, seu nome é mesmo bem comum: há 47 Trier e 352 Lars; o "von" não estava em sua certidão de nascimento, o diretor inventou durante a faculdade de cinema e nunca mais abandonou.
Por fim, pergunto se ele não acha irônico o fato de estarmos, um jornalista brasileiro e um diretor dinamarquês, conversando em inglês sobre um filme que ataca justamente os Estados Unidos. Ele pede desculpa por não falar espanhol ("excuse me?") e ri. "Você acha que Bush Filho vai querer me bombardear por isso?"
É improvável, mas não necessariamente impossível.


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